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CONTARDO CALLIGARIS
Terapias virtuais para nossa realidade virtual
Quem não gostaria de jogar
videogame para se livrar de
sintomas chatos e invalidantes?
Pois bem, recentemente "Veja" e
"Época" assinalaram a existência
de Virtually Better (Virtualmente
Melhor). É uma das empresas que
desenvolvem programas de realidade virtual para curar medo de
avião, de altura, de tempestade,
de espaços abertos e de falar em
público. A sede é em Atlanta, mas
há clínicas afiliadas até em Buenos Aires. Aposto que logo aparecerá uma sucursal em São Paulo.
Eis como se chegou ao uso terapêutico da realidade virtual. Há
tempo existem terapias ditas de
dessensibilização: os pacientes
(sobretudo fóbicos) são expostos
progressivamente aos objetos de
seus medos, aprendendo técnicas
para acalmar a angústia.
Pode-se tentar a exposição pela
imaginação: feche os olhos, imagine que está subindo no avião
etc. Não funciona muito bem. A
exposição real é mais eficaz: paciente e terapeuta viajam no mesmo avião -quem sabe de mãos
dadas, seguindo a sugestão de
Belchior.
Infelizmente é um acompanhamento caro (pelo tempo que o terapeuta dedica ao paciente). E incerto: por exemplo, seria bom que
o primeiro vôo fosse tranquilo,
mas como garantir que não haja
turbulências naquele dia?
Esses problemas são resolvidos
pela realidade virtual, que comprovadamente oferece a mesma
eficácia da exposição real, reduz
os custos e permite o controle da
experiência.
O paciente veste um capacete e,
ao virar a cabeça, tem uma visão
de 360 graus e som estéreo. Outros
aparelhos (um colete, uma cadeira que vibra e mexe) produzem
mais impressões sensoriais, aperfeiçoando a imersão no mundo
virtual. O terapeuta acompanha
o paciente graças a uma tela.
Sua fala ressoa de dentro do
mundo virtual. Alguns eletrodos
informam o terapeuta sobre o nível de estresse que a situação virtual está impondo ao paciente.
Ele pode assim calibrar suas intervenções.
Por exemplo, no programa para
o medo de falar em público, o terapeuta controla as reações da
platéia. Dependendo do estresse
do paciente, ele administra
aplausos, indiferença ou vaias.
Detalhe interessante: o paciente
pode ensaiar dessa forma uma
palestra que ele deve realmente
apresentar e cujo texto aparece
num teleprompter para ele ler.
Estudos pequenos, mas significativos, mostram que a terapia
virtual funciona. Seus benefícios
não são sempre permanentes; em
compensação, é fácil repetir a dose se for necessário.
Pode-se discutir sobre a origem
desta eficácia. Alguns acreditam
que a melhora seja o efeito da
simples repetição. É a idéia do rei
Mitrídates: tomando um pouco
de veneno a cada dia, a gente se
tornaria imune. A meu ver, a mudança não aconteceria sem o diálogo e a confiança depositada no
terapeuta.
Seja como for, se a realidade
virtual pode nos ajudar a vencer
ou a controlar nossos medos, é
porque -como comentou um colega, Manoel Berlinck- estes são
tão virtuais quanto os programas.
Que o avião caia, que sejamos
aspirados no precipício, que nossa
voz falhe e a platéia nos devore ou
que o espaço aberto nos aniquile,
esses pavores são puras virtualidades.
A lição das terapias virtuais não
pára aqui. Virtually Better propõe um programa de realidade
virtual para o tratamento dos
transtornos pós-traumáticos dos
veteranos do Vietnã. A memória
e seus traumas podem ser corrigidos virtualmente do mesmo jeito
que a antecipação e seus medos.
Há mais. No começo dos anos
90, uma outra técnica de realidade virtual -a realidade aumentada- deu resultados positivos
com pacientes de doença de Parkinson que apresentam o seguinte
paradoxo neurológico: sua marcha é imobilizada, e eles conseguem avançar só se houver obstáculos ou limiares. O caminho deles foi, portanto, obstruído por
obstáculos virtuais projetados, o
que lhes permitiu avançar.
Também se difunde o uso anestésico da realidade virtual. A
imersão num outro mundo produz mais do que uma simples distração. Ela transporta os pacientes alhures durante a dolorosa
medicação de queimaduras ou a
administração de quimioterapias
pesadas.
Em suma, o futuro dos programas de realidade virtual é luminoso. Sua eficácia é garantida,
pois eles nos propõem experiências cuja matéria-prima é a mesma tanto de nossos medos quanto
de nossas aspirações, fantasias e
lembranças.
Sofremos, sonhamos e gozamos
com virtualidades -ectoplasmas
projetados por nossa subjetividade. São elas que nos assustam e
inibem ou motivam e excitam.
Não é de estranhar que a imersão
em mundos virtuais eletrônicos
nos afete.
P.S.: Neste sábado, chega às livrarias americanas o quarto livro de
Harry Potter. É a maior primeira
tiragem da história: 3,8 milhões
de exemplares.
Mesmo assim, as pessoas estão
com medo de ficar sem um. Fiz
minha reserva e receberei meu
exemplar à meia-noite de sexta.
Seguindo o princípio de marketing do livro: na coluna da próxima quinta, vou enfim dizer por
que eu e alguns outros gostamos
de Harry Potter. Desde já, reserve
o seu exemplar da Folha nas bancas.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
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