São Paulo, sexta-feira, 06 de julho de 2001

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Reaparece roteiro do que seria o 1º filme da jovem guarda

Romanticamente revolucionários

Reprodução
Os pop stars Wanderléia, Roberto Carlos, e Erasmo Carlos na época do auge do sucesso da jovem guarda, na segunda metade dos 60


Co-escrito por Jô Soares, roteiro de "SSS contra a Jovem Guarda" seria filmado por Luiz Sérgio Person

ALCINO LEITE NETO
PEDRO ALEXANDRE SANCHES


DA REPORTAGEM LOCAL

O cinema pop brasileiro teria uma outra história, talvez mais divertida, se nos anos 60 houvesse sido feito o filme "SSS contra a Jovem Guarda". A produção, iniciada em 1966, nunca veio à luz, mas o roteiro está nas mãos de Jô Soares, que o escreveu em parceria com o crítico e diretor Jean-Claude Bernardet e o também diretor Luiz Sérgio Person (1936-76).
Seria o primeiro filme estrelado pelo trio Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, então hegemônico no pop, que logo iniciou bem-sucedida trilogia de filmes pop dirigidos por Roberto Farias.
Há poucas semanas, o roteiro foi presenteado por Erasmo a Jô, num dos programas do entrevistador. "Ficou guardado comigo esse tempo todo, eu nem lembrava mais. Um dia, arrumando uns baús, topei com ele, e logo pensei em mostrar ao Jô", diz Erasmo.
A Folha teve acesso ao texto datilografado (cuja data de realização é 1966, no apogeu da jovem guarda) e às primeiras imagens que a equipe de Person filmou para a produção, hoje em poder de sua filha Marina Person, que prepara, ainda sem patrocínio, um documentário sobre o cineasta.
As imagens de Person (veja fotos à esq.) captam a festa/entrevista de lançamento do elenco e um grande show de aniversário de Roberto, com participações de Jorge Ben, Elis Regina, Wilson Simonal e Jair Rodrigues. Tomadas da platéia apaixonada predominam no material filmado. Os rolos de som foram perdidos.
O filme seria produzido pela agência Magaldi, Maia e Prosperi, que cuidava da imagem do trio da jovem guarda, num arranjo estratégico original para a época, reunindo publicidade, estrelato musical e trabalho da mídia.
"Era para ser um filme sobre a nova onda: romanticamente revolucionário", avalia Jô. Mas não pôde ser feito. Roberto rompeu com a agência e, como não havia contratos sólidos à época, "tudo caiu por terra", na expressão de Bernardet. Ele lembra também que Erasmo e Wanderléa frequentemente reclamavam da presença dominante de Roberto no enredo, outro fator de discórdia.
Erasmo diz que a questão poderia ter sido resolvida com uma divisão melhor de papéis, mas admite as dificuldades: "Não lembro se houve esse problema, sinceramente, mas o segundo plano naquela época incomodava a gente. Era muita coisa para Roberto e pouca para nós. A gente era figuração, mais que coadjuvante".
No roteiro, a turma da jovem guarda enfrenta o grupo secreto SSS, de inclinação implicitamente fascista, formado por velhinhos conservadores e doutores malucos, que planeja operar Roberto para que ele não pudesse mais cantar, impedindo com isso a irradiação dos maus costumes da juventude iê-iê-iê pelo país.
Em clima de comédia, mas numa mistura de vários gêneros (burlesco, espionagem, gângster, musical, pastelão etc.), Roberto Carlos seduz as espiãs Pepsi e Fanta e enfrenta, completamente alienado do perigo, o capanga Jerônimo.
Várias situações recorrem ao modelo de narrativa das histórias em quadrinhos. Cortes rápidos descrevem a vida de um ídolo musical em ritmo juvenil e debochado. A paisagem urbana se impõe, com seus mitos de então. Roberto corre pelas ruas em seu calhambeque e interpreta vários sucessos -ao som de "É Proibido Fumar" o roteiro prevê imagens incendiárias em Cubatão.
Em 66, segundo ano do golpe militar, ainda havia espaço para o debate político e a contestação. A juventude encontrava-se dividida entre os apelos crescentes da politização e da revolução, por um lado, e a sedutora contestação dos costumes vigentes e a criação de novos tipos de sociabilidade, signos e sons, por outro.
O pop, expressão dos 60, que buscava ultrapassar o conflito entre as culturas nacionais-populares e o gosto das elites internacionais, chegava ao Brasil pelas guitarras elétricas da jovem guarda, mas também pelo tropicalismo e de certa forma pelo cinema novo.
Luiz Sergio Person, autor dos clássicos do novo cinema brasileiro "São Paulo S/A" (65) e "O Crime dos Irmãos Naves" (67), foi quem teve a idéia de realizar o filme, valendo-se do sucesso espantoso do trio pop. Em 65, procurou Bernardet e Jô Soares para que ambos trabalhassem o roteiro, supervisionados por ele.
Bernardet, recém-naturalizado brasileiro (ele nasceu na Bélgica, em 36), estava envolvido no roteiro de "Irmãos Naves" quando Person lhe propôs: "Vamos fazer um filme com Roberto Carlos?". "Com quem?", perguntou Bernardet. "Roberto Carlos, a grande vedete da canção atualmente."
Jô conhecia um pouco melhor a jovem guarda, mas nem ele nem Bernardet tinham por aquela música grande estima. A cinefilia os unia, bem como o humor. Bernardet atribui a Jô boa parte das piadas do filme: "Jô era bem mais pop do que eu". O humorista prefere dizer que "houve um estímulo mútuo para inventar as gags".
Uma vez por semana, Person lia o que estava escrito e pedia mudanças. Reclamava do excesso de ironia dos roteiristas, pedindo mais adesão à jovem guarda.
As situações absurdas e até metacinematográficas ultrapassam, em muito, a inspiração inicial obtida do filme dos Beatles "Os Reis do Iê-Iê-Iê" (64). Numa dessas sequências do roteiro, Roberto, depois de beijar a fatal Ágata, vira para a câmera e diz: "Boa, Person, dessa cena eu gostei. Vou fazer de novo". Em outra são lançados por uma janela uma noiva, um cachorro, uma velhinha, um escoteiro, um padre, um soldado.
A homenagem à chanchada comparece com a previsão de filmar Oscarito numa cena em um avião, em que ele diz: "Eu acho que peguei o avião errado".
O roteiro passou a ser lido em voz alta durante encontros da dupla Person-Bernardet com os cantores e os publicitários. Eram reuniões longuíssimas, interrompidas a todo momento pelos secretários de Roberto.
Desesperado com o andamento da leitura, Person convidou Roberto e Bernardet para discutirem o projeto em seu apartamento. O cantor foi levado às pressas para dentro do prédio, a fim de evitar o assédio das fãs. Em vão. O edifício foi invadido por garotas histéricas, que batiam desesperadamente à porta e só desistiram de madrugada. Mais uma vez, o filme não pôde ser discutido. "Mas lembro que Roberto havia gostado do roteiro", diz Bernardet.
No elenco, para fazer o líder da SSS, era certo que seria convidado o diretor Eugênio Kusnet. Jô supõe que ele próprio teria sido cogitado para fazer Jerônimo, o vilão trapalhão. Jorge Ben Jor, então Jorge Ben, amigo de Person, apareceria cantando "Aleluia".
A trilogia de filmes da jovem guarda só foi começar em 68, com "Roberto Carlos em Ritmo de Aventura". Teve amplo sucesso, mas lhe falta o que haveria de sobra em "SSS contra a Jovem Guarda": a desenvoltura cinematográfica proposta pelo roteiro, a irreverência com os valores tradicionalistas e com o próprio estilo da jovem guarda e, sobretudo, uma avançada percepção sobre como se constroem os mitos juvenis. Para a história do filme nacional, o roteiro é o "rosebud" de um cinema que pudesse ser ao mesmo tempo popular e inteligente.



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