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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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MÔNICA BERGAMO

Chris von Ameln/Folha Imagem
4 HORAS A fila na Sambódromo chega a 500 metros

Uma noite na fila dos garis

Rio, 19 graus. Sob essa temperatura, numa madrugada, a de quarta-feira, 2, considerada gelada para os padrões da cidade, 18 mil pessoas deixaram suas casas, no subúrbio, com o sonho de conseguir um emprego de gari. Naquele dia, a Comlurb, a companhia de limpeza urbana do Rio de Janeiro, estava recebendo inscrições de pessoas cujos nomes começassem com as letras K, L, M, N, O e P.
 
Kátia Santos, 30, assustada com as imagens de TV que mostraram, nos dias anteriores, multidões no sambódromo, saiu de casa às 2h para conseguir um bom lugar na fila. A vontade de conseguir uma vaga é tanta que Kátia, animada, já começou um regime: com 80 kg, ela está "gordinha" e poderá ser eliminada na primeira prova do concurso, a que confere se o IMC (Índice de Massa Corporal) do candidato se encaixa nos padrões. Afinal, gari corre de um lado para o outro.
 
Se passar na prova do IMC, marcada para agosto, Kátia vai para a prova de exercícios: ela terá que fazer 30 abdominais, 27 flexões e correr 2.100 metros para mostrar à Comlurb que está tinindo. Kátia confessa, sorrindo, que atualmente só consegue fazer três abdominais. Vai "malhar" para a prova. Um tio de Kátia é gari e adora. "Eu também vou gostar. É tudo uma questão de costume." Kátia, que faz "bicos" de faxina, está na 7ª série. Vai disputar vaga com pessoas que já estão na universidade.
 
Leandro Viegas, 24, cursa história na Unisuam, em Bonsucesso. Dá aula de história e geografia no colégio Mercúrio, na Pavuna, para crianças da 1ª à 4ª série. Mas quer virar gari. "Busco estabilidade. A inadimplência cresceu nas escolas, e o número de alunos diminuiu. Eu trabalhava 36 horas por semana; agora trabalho 23h." Como ganha R$ 4 por hora, sua renda caiu para R$ 323 mensais. Com salário e benefícios, um gari ganha R$ 610.
 
Marias -Aparecida, das Graças, da Conceição. Elas são milhares na fila dos garis. À 1h30, Maria da Conceição Araújo, 29, e o marido, Luís da Silva, 28, desembarcaram no sambódromo com colchonete, edredom, garrafa de água congelada (para durar a noite toda), garrafa de café, laranjas, biscoitos, dominó e o "Pensamento Dinâmico", de Robert J. O'Reilly, "um livro destinado a pessoas que tenham a mente voltada para o sucesso", segundo a contracapa.
 
"O livro ensina a ter força de vontade, ser otimista e querer sempre fazer o melhor", explica Luís, enquanto serve café para Márcio do Lago, que levou a Bíblia e um walkman com fitas de MV Bill e Marcelo D2 para atravessar a noite. As histórias grandiosas de Márcio impressionam. Diz ele que, ao servir no Exército, invadiu morros para combater o tráfico. Desempregado, acha que ser gari é "um superemprego". Mas está tirando passaporte: quer ir para Angola trabalhar em obras de empreiteiras brasileiras. "Dá para ganhar US$ 3.000 por mês." Bem, é o que ele diz.
 
Em torno da fila, ambulantes vendem café, açaí, água. Os noivos Igor Corrêa, 23, e Renata Pinheiro, 23, vendiam salgadinhos. Ele estuda educação física, e ela, direito. Como os candidatos a gari, têm muitos sonhos na cabeça -e pouco dinheiro no bolso. Certo dia resolveram vender salgadinhos num concurso para merendeira. Deu certo. Decidiram investir em filas. "Na das merendeiras, vendemos coxinha a R$ 1,30. Aqui, baixamos para R$ 1", diz Igor -chamado pelos candidatos de "Tiago Lacerda". Na quarta, eles ganharam R$ 100.
 
Neire Pinto, 25, carregou o filho Levi, 1, para a fila. "Ele está acostumado: é fila na madrugada para ir ao médico, tudo é fila!", diz. Ela acha que a função de gari, antes discriminada, ""tá" valorizada. É emprego público, você não é despedido".
 
Onir Alves ganha R$ 200 numa firma de construção. Mas quer ser gari para trabalhar "só oito horas" e terminar o 2º grau. Eis que, de repente, furor na fila: é a Naomi Campbell, é um avião? Não.
 
Patrícia de Almeida, 21, é apenas mais uma bela mulata carioca. Frequentadora de baile funk, segue a moda: usa cabelos tipo "miojo", ondulados, e as unhas pintadas com flores -a última moda das manicures de Belford Roxo. Ela é mais uma entre os mais de 100 mil que se inscreveram para uma vaga que, na verdade, ainda nem existe. A Comlurb pretende recrutar apenas 6.000 pessoas para formar um "banco de reposição". Elas só serão chamadas caso os atuais garis deixem o trabalho. Ou sejam demitidos.

FICHA

Eu cheguei em 82.446º lugar

Esta colunista fez sua inscrição no concurso de garis da Comlurb à 1h30 da manhã. Poucas pessoas estavam na fila do Sambódromo, o local do registro, quando cheguei lá.
 
"Isso dura pouco", contava Antônio Pereira, chefe dos atendentes do concurso. "Logo ônibus e trens começam a circular na cidade, e o Sambódromo lota." Às 4h, uma fila de 500 m já estava formada. Às 7h, uma multidão impressionante tomou o lugar.
 
A inscrição é simples: um atendente examinou meu RG e documentos escolares. Escreveu meu nome numa ficha e me entregou: ela informava que fui a 82.446ª inscrita no concurso. Dizia ainda que deverei voltar ao Sambódromo para o teste de IMC (Índice de Massa Corporal), calculado de acordo com o peso e a altura. Ele vê se a pessoa é "magérrima", "normal magra", "normal", "normal pesada" ou "obesa". Gari deve ser "normal". Feitos os cálculos, eu sou "normal".
 
Duro vão ser os testes de exercício: mulher, na faixa dos 30, terei que fazer 30 abdominais, 27 flexões e correr 2.100 m caso queira passar para a fase final (um homem tem que fazer 37 abdominais e 31 flexões). Será a chamada "prova de fogo": o candidato precisa capinar e varrer, em quatro horas, uma área determinada pela banca do concurso.


@ - bergamo@folhasp.com.br

COM CLEO GUIMARÃES E ALVARO LEME



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