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MÔNICA BERGAMO
Chris von Ameln/Folha Imagem
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4 HORAS A fila na Sambódromo chega a 500 metros
Uma noite na fila dos garis
Rio, 19 graus. Sob essa temperatura, numa madrugada, a
de quarta-feira, 2, considerada gelada para os padrões da
cidade, 18 mil pessoas deixaram
suas casas, no subúrbio, com o
sonho de conseguir um emprego de gari. Naquele dia, a Comlurb, a companhia de limpeza
urbana do Rio de Janeiro, estava
recebendo inscrições de pessoas
cujos nomes começassem com
as letras K, L, M, N, O e P.
Kátia Santos, 30, assustada
com as imagens de TV que
mostraram, nos dias anteriores,
multidões no sambódromo,
saiu de casa às 2h para conseguir um bom lugar na fila. A
vontade de conseguir uma vaga
é tanta que Kátia, animada, já
começou um regime: com 80
kg, ela está "gordinha" e poderá
ser eliminada na primeira
prova do concurso, a que
confere se o IMC (Índice
de Massa Corporal) do
candidato se encaixa nos
padrões. Afinal, gari corre
de um lado para o outro.
Se passar na prova do
IMC, marcada para agosto, Kátia vai para a prova
de exercícios: ela terá que
fazer 30 abdominais, 27
flexões e correr 2.100 metros para mostrar à Comlurb que está tinindo. Kátia confessa, sorrindo, que
atualmente só consegue
fazer três abdominais. Vai
"malhar" para a prova.
Um tio de Kátia é gari e
adora. "Eu também vou
gostar. É tudo uma questão de costume." Kátia,
que faz "bicos" de faxina,
está na 7ª série. Vai disputar vaga com pessoas que
já estão na universidade.
Leandro Viegas, 24, cursa história na Unisuam,
em Bonsucesso. Dá aula
de história e geografia no
colégio Mercúrio, na Pavuna, para crianças da 1ª à
4ª série. Mas quer virar
gari. "Busco estabilidade.
A inadimplência cresceu
nas escolas, e o número de
alunos diminuiu. Eu trabalhava
36 horas por semana; agora trabalho 23h." Como ganha R$ 4
por hora, sua renda caiu para R$
323 mensais. Com salário e benefícios, um gari ganha R$ 610.
Marias -Aparecida, das Graças, da Conceição. Elas são milhares na fila dos garis. À 1h30,
Maria da Conceição Araújo, 29,
e o marido, Luís da Silva, 28, desembarcaram no sambódromo
com colchonete, edredom, garrafa de água congelada (para
durar a noite toda), garrafa de
café, laranjas, biscoitos, dominó
e o "Pensamento Dinâmico", de
Robert J. O'Reilly, "um livro
destinado a pessoas que tenham
a mente voltada para o sucesso", segundo a contracapa.
"O livro ensina a ter força de
vontade, ser otimista e querer
sempre fazer o melhor", explica
Luís, enquanto serve café para
Márcio do Lago, que levou a Bíblia e um walkman com fitas de
MV Bill e Marcelo D2 para atravessar a noite. As histórias grandiosas de Márcio impressionam. Diz ele que, ao servir no
Exército, invadiu morros para
combater o tráfico. Desempregado, acha que ser gari é "um
superemprego". Mas está tirando passaporte: quer ir para Angola trabalhar em obras de empreiteiras brasileiras. "Dá para
ganhar US$ 3.000 por mês."
Bem, é o que ele diz.
Em torno da fila, ambulantes
vendem café, açaí, água. Os noivos Igor Corrêa, 23, e Renata Pinheiro, 23, vendiam salgadinhos. Ele estuda educação física,
e ela, direito. Como os candidatos a gari, têm muitos sonhos na
cabeça -e pouco dinheiro no
bolso. Certo dia resolveram
vender salgadinhos num concurso para merendeira. Deu
certo. Decidiram investir em filas. "Na das merendeiras, vendemos coxinha a R$ 1,30. Aqui,
baixamos para R$ 1", diz Igor
-chamado pelos candidatos
de "Tiago Lacerda". Na quarta,
eles ganharam R$ 100.
Neire Pinto, 25, carregou o filho Levi, 1, para a fila. "Ele está
acostumado: é fila na madrugada para ir ao médico, tudo é fila!", diz. Ela acha que a função
de gari, antes discriminada, ""tá"
valorizada. É emprego público,
você não é despedido".
Onir Alves ganha R$ 200 numa firma de construção. Mas
quer ser gari para trabalhar "só
oito horas" e terminar o 2º grau.
Eis que, de repente, furor na fila:
é a Naomi Campbell, é um
avião? Não.
Patrícia de Almeida, 21, é apenas mais uma bela mulata carioca. Frequentadora de baile funk,
segue a moda: usa cabelos tipo
"miojo", ondulados, e as unhas
pintadas com flores -a última
moda das manicures de Belford
Roxo. Ela é mais uma entre os
mais de 100 mil que se inscreveram para uma vaga que, na verdade, ainda nem existe. A Comlurb pretende recrutar apenas
6.000 pessoas para formar um
"banco de reposição". Elas só
serão chamadas caso os atuais
garis deixem o trabalho. Ou sejam demitidos.
FICHA
Eu cheguei em 82.446º lugar
Esta colunista fez sua inscrição no concurso de garis da
Comlurb à 1h30 da manhã.
Poucas pessoas estavam na fila
do Sambódromo, o local do registro, quando cheguei lá.
"Isso dura pouco", contava
Antônio Pereira, chefe dos
atendentes do concurso. "Logo ônibus e trens começam a
circular na cidade, e o Sambódromo lota." Às 4h, uma fila de
500 m já estava formada. Às
7h, uma multidão impressionante tomou o lugar.
A inscrição é simples: um atendente examinou meu RG e documentos escolares. Escreveu
meu nome numa ficha e me
entregou: ela informava que
fui a 82.446ª inscrita no concurso. Dizia ainda que deverei
voltar ao Sambódromo para o
teste de IMC (Índice de Massa
Corporal), calculado de acordo com o peso e a altura. Ele vê
se a pessoa é "magérrima",
"normal magra", "normal",
"normal pesada" ou "obesa".
Gari deve ser "normal". Feitos
os cálculos, eu sou "normal".
Duro vão ser os testes de
exercício: mulher, na faixa dos
30, terei que fazer 30 abdominais, 27 flexões e correr 2.100 m
caso queira passar para a fase
final (um homem tem que fazer 37 abdominais e 31 flexões). Será a chamada "prova
de fogo": o candidato precisa
capinar e varrer, em quatro
horas, uma área determinada
pela banca do concurso.
@ - bergamo@folhasp.com.br
COM CLEO GUIMARÃES E ALVARO LEME
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