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[+]crônica
Mas o que é ficção e o que é realidade?
NOEMI JAFFE
ENVIADA ESPECIAL A PARATY
Hitler foi colega de
classe de Wittgenstein. Às vezes, penso como essa convivência entre um alemão
mediano e um judeu genial pode ter germinado,
na indecifrável alma do
primeiro, a idéia da guerra,
cuja origem pode ter sido
uma pequena inveja.
À espera da entrevista
de Ishmael Beah, sento na
calçada e ouço gritarem:
"Ishmael foi comer pastel!". Vou ao banheiro do
hotel dos autores, um solar colonial, e lá está o Ishmael do pastel, lutando
com a tramela emperrada
da porta do banheiro.
Serra-leonês que lutou
na guerra civil africana,
matou o primeiro homem
aos 13, perdeu pai e mãe,
foi drogado e manipulado,
agora briga com a trava da
porta emperrada. Volto à
calçada. Vejo Robert Fisk
no andar de cima, tentando consertar uma janela
emoldurada do século 18,
que também emperrou.
Todos parecem tranqüilos. Ouço um senhor dizer:
"No Ceará há 810 Adões. A
história remonta ao século
16, quando certo Adão
chegou da ilha dos Açores,
fugindo da Inquisição."
Vou à entrevista coletiva. Beah, um menino idoso
de 26 anos, que viaja pelo
mundo tentando conscientizar as pessoas sobre
a necessidade de crianças
pobres terem chance de
conhecer a si mesmas, responde minha pergunta
com outra: "Mas o que é
ficção e o que é realidade?"
Ele diz não saber. Também não sei, nem mesmo
quando a dita realidade esperneia na nossa frente,
dizendo: "Eu sou terrível!", como numa guerra.
Vou ao show da Orquestra Imperial e de João Donato. Bárbara Heliodora
discursa e fala que algum
personagem de Nelson
Rodrigues "emasculou" alguma coisa e que ele tinha
um "pernambucano ouvido". Coetzee ouve, austero. O que será que pensa?
Entra a Orquestra. Beah
olha, ansioso, e, após uns
minutos, começa a dançar.
Não sei a diferença entre ficção e realidade. Mas
sei que pequenas coisas
podem determinar muito,
para o bem e para o mal.
Na verdade, isso não tem
importância, e aqui, agora,
não quero nem saber.
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