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CARLOS HEITOR CONY
Dois lenços na história de Vargas
Getúlio usava um uniforme sóbrio, como convinha
ao chefe civil de um movimento
armado. As fardas provincianas
tinham uma combinação mediterrânea de cores e símbolos que
resultava feérica. Um coronel dos
provisórios, lançado no hall de
um hotel em Nice, seria tomado
como porteiro ou como o conde
de Luxemburgo em pessoa e farda. Quanto a ele, o único adorno
que consentiu em usar era anterior à farda e ao movimento revolucionário: foi o lenço branco do
seu partido, o lenço chimango,
símbolo das velhas lutas gauchescas. O lenço de Júlio de Castilhos,
de Borges de Medeiros, o lenço republicano.
Era a marca de sua pessoa, de
sua grei, de sua crença. O partido
contrário usava outro lenço, o
vermelho do sangue maragato. A
Frente Única unira adeptos de
um e de outro lenço, mas cada
qual ficou com o que era seu. O
acordo tornara possível a "pax"
que desceria sobre os pampas tumultuados, criando condições para que os gaúchos roncassem feio
e forte no cenário nacional, não
mais com fatos ou personagens
isolados, como Pinheiro Machado, mas como unidade da federação que tinha o que dizer e fazer.
Apesar da união recente, quem
era maragato botava no pescoço
o lenço vermelho. Quem era republicano ficava com o lenço branco. O Acordo de Pedras Altas, entre Borges e Assis Brasil, previra
uma união de idéias, não de lenços.
O trem que trazia os dois principais chefes revolucionários, Getúlio Vargas e Góis Monteiro, chegara a Curitiba e ali encontrara
um clima emocionado. Um estudante paranaense morrera num
combate ocasional, episódio realmente isolado, pois quase não havia luta entre as forças leais ao governo e os revoltosos que estavam
dispostos a depor Washington
Luís e, com ele, a Velha República. A cidade preparara um velório de herói nacional para a única
vítima local. Getúlio e Góis não
costumavam sair do trem onde
funcionava o quartel-general da
revolução.
Por conta própria ou por sugestão de algum assessor (não havia
marqueteiros naquele tempo), os
dois chefes supremos decidiram ir
à capela onde o jovem estava sendo velado pela multidão. Abriram alas para eles. A mãe da vítima, ao reconhecer em Getúlio o
homem que encarnava o ideal pelo qual o estudante se sacrificara,
teve uma atitude surpreendente,
espartana: abraçou-se a ele e, sem
lágrimas na voz, disse que dera
seu filho à pátria e à revolução,
que não estava arrependida, só
implorava que o sacrifício dele e o
dela também não fossem em vão.
A cena comoveu até mesmo o
tenente-coronel Góis Monteiro,
homem habituado às intempéries
da caserna. É possível que tivesse
apelado, durante o trajeto do
trem à capela, para o cantil, onde
não se sabia se havia água ou cachaça. O fato é que, segundo uma
testemunha, fungou prendendo
um soluço.
Vargas, homem de controle
emocional extraordinário, que se
policiava como um anacoreta,
sentiu um nó na garganta quando a mãe do herói o abraçou. Comovida, a multidão não suportou
a cena e muitos começaram a
chorar.
A hora não era para discursos,
bastava o desabafo da mãe da vítima num arranque inesperado e
brutal. Vargas fez um gesto que
valeu por um discurso: aproximou-se do caixão, tirou o lenço
branco do pescoço e o colocou sobre o rosto do estudante. Era mais
que uma homenagem: era uma
condecoração.
Quando ele se afastou da capela, um cidadão surgiu à sua frente. Tinha, em volta do pescoço,
um lenço vermelho, o lenço maragato. Alguns anos antes, dois gaúchos com lenços diferentes, frente
a frente, tinham de puxar o punhal ou a pistola, pois somente
um deles deveria viver. Mas agora
estavam todos no mesmo barco,
na mesma aventura. O cidadão
tirou o seu lenço e, num gesto de
audácia que ninguém conseguiu
evitar, colocou-o no pescoço que,
havia três gerações, só conhecia
uma cor de lenço: o branco.
Um republicano fanático teria
repelido imediatamente o lenço
adversário, tal como um maragato, que preferiria ser degolado, como em 1893, a usar um lenço do
partido rival. Aquela imposição
de lenços seria um exagero emocional que nem mesmo a união
revolucionária toleraria. Que se
unissem republicanos e federalistas, chimangos e maragatos para
destruir um adversário comum
certo. Mas que essa união conspurcasse o átrio das tradições, o
templo dos velhos ódios, das muitas mortes e derrotas era demais.
Houve espanto e temor na multidão. Que faria ele, um republicano de estirpe, filho e neto de republicanos, de repente exibido em
público com um lenço maragato
no pescoço?
Getúlio nada fez, ou melhor, fez
muita coisa. Partiu da capela por
entre alas da multidão, enfrentando os ressentimentos provincianos de alguns de seus companheiros. Estava agora armado cavaleiro. Estava feito revolucionário. Com esse lenço vermelho chegaria ao Rio, assumiria o poder.
Aquele vermelho não significava
guerra nem sangue. Significava
acordo. O sangue dele ficaria para bem mais tarde.
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