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NELSON ASCHER
Vícios pequeno-burgueses
O medo que a classe média tem de reclamar e armar um barraco é o que silencia a oposição
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É SURPREENDENTE a indignação que uma manifestação de
protesto legal, ordeira e relativamente modesta ocasionou. A
histeria de muitos que, na imprensa
ou na mídia eletrônica, a criticaram,
poder-nos-ia levar a crer que estivemos perante algo semelhante em escala aos protestos que, em 1989, derrubaram as ditaduras comunistas da
Europa Central.
Parte dessa reação se deve, sem
dúvida, à alergia que os atuais donos
do poder e seus bajuladores sentem
diante da crítica, qualquer crítica.
Raras vezes tivemos um presidente
tão vaidoso, tão avesso a ouvir o que
não seja aplauso.
Ademais, se há algo que torna nossos últimos cinco anos peculiares, é
o seguinte: houve diversas ditaduras
e outros tantos governos antipáticos
no Brasil, mas, até há pouco, quem
cuidava de zelar pela reputação destes eram órgãos deles mesmos, isto
é, a censura, a polícia política e assim
por diante. Já hoje em dia são cidadãos privados, jornalistas, professores, intelectuais e militantes em geral que fazem o trabalho sujo e, se o
regime militar precisava recrutar e
recompensar seus delatores e forças
de repressão, as do atual regime militante agem voluntária e gratuitamente.
O que é que tanto se criticou a respeito das manifestações recentes?
Bom, como seu estopim foi um acidente aéreo em boa parte associável
ao governo federal e como os manifestantes podiam ser considerados
possíveis usuários de um meio de
transporte que, de acordo com preconceitos facilmente refutáveis, é
usado sobretudo pelos afluentes, o
contra-argumento central dava a
entender que ricos não têm direito a
reclamar de nada.
Por quê? Ora, porque há pobres
que têm mais do que reclamar, começando (e terminando) pela sua
própria pobreza. De acordo com os
que assim pensam, o único problema social, ou melhor, humano é a
falta (às vezes nem absoluta, apenas
relativa) de dinheiro, enquanto que,
paradoxalmente, o único pecado capital consiste em tê-lo. Claro, diriam
eles, pois os que têm só têm aquilo
que pertence aos que têm menos.
Nenhum nexo precisa jamais ser demonstrado, e todos sabem igualmente que, tão logo se instaure a homogeneidade absoluta, a tal da justiça social (que, como se viu no século
passado, conduz ao ponto no qual
ninguém mais tem esperança de ter
nada), tudo estará resolvido.
Mesmo os que não achem exatamente isso ainda parecem acreditar
que, a sociedades complexas como a
nossa, é possível aplicar uma priorização simplificadora. Por que cuidar
da malha aérea, que serve poucos,
antes de pôr em ordem o transporte
coletivo, que serve muitos?
De forma idêntica: por que pesquisar remédios para o câncer (que
atinge em geral gente com mais de
60 anos) antes de tratar as cardiopatias (cujas vítimas estão na casa dos
50) e estas (ou a Aids) antes de acabar de vez com a malária? Como é
que pode haver alta culinária ou até
restaurantes razoáveis num planeta
onde milhões passam fome?
Quando quem faz essas perguntas
tem menos de dez anos, a gente explica. Se ele ou ela tem mais, aí já não
adianta, nem vale a pena segredar-lhe que o contrário do auto-interesse esclarecido não é nem o altruísmo, nem o amor universal, mas a paranóia sanguinária.
Trocando em miúdos, a reação negativa, assustada e sarcástica à manifestação e aos manifestantes decorreu, não raro, dos velhos cacoetes
mentais socialistas da antigüidade
(séculos 19 e 20).
Suspeito, porém, que suas raízes
sejam mais profundas. Pois, tendo
em vista que os realmente pobres lidam com a natureza humana nua e
crua e que os de fato ricos entendem
a fungibilidade do que conta, a atribuição de todos os achaques humanos a diferenças de renda, um viés
ou vício pequeno-burguês, vem se
generalizando graças à classe-medianização crescente, se não ainda
de todos os seus habitantes, pelo
menos da mentalidade dominante
no planeta.
A rigor, entre os grupos existentes,
é só a classe média que se atormenta
com determinados dilemas. É só ela
que, através de seus representantes
afinal legítimos, fica se dilacerando
com questões como as de cima, que
sofre de má consciência, que acha
que deve se calar quando a maltratam porque "mais sofreu nosso tio
Judas". Daí que, quando se trata dela, o perigo maior seja não o da censura externa (do regime militante e seus paladinos), mas, sim, o da interna: a autocensura. E esse medo, tão
tipicamente suburbano, de reclamar, chamar atenção, armar um
barraco é precisamente o que pauta
e silencia as oposições.
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