São Paulo, segunda-feira, 06 de agosto de 2007

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NELSON ASCHER

Vícios pequeno-burgueses


O medo que a classe média tem de reclamar e armar um barraco é o que silencia a oposição

É SURPREENDENTE a indignação que uma manifestação de protesto legal, ordeira e relativamente modesta ocasionou. A histeria de muitos que, na imprensa ou na mídia eletrônica, a criticaram, poder-nos-ia levar a crer que estivemos perante algo semelhante em escala aos protestos que, em 1989, derrubaram as ditaduras comunistas da Europa Central.
Parte dessa reação se deve, sem dúvida, à alergia que os atuais donos do poder e seus bajuladores sentem diante da crítica, qualquer crítica. Raras vezes tivemos um presidente tão vaidoso, tão avesso a ouvir o que não seja aplauso.
Ademais, se há algo que torna nossos últimos cinco anos peculiares, é o seguinte: houve diversas ditaduras e outros tantos governos antipáticos no Brasil, mas, até há pouco, quem cuidava de zelar pela reputação destes eram órgãos deles mesmos, isto é, a censura, a polícia política e assim por diante. Já hoje em dia são cidadãos privados, jornalistas, professores, intelectuais e militantes em geral que fazem o trabalho sujo e, se o regime militar precisava recrutar e recompensar seus delatores e forças de repressão, as do atual regime militante agem voluntária e gratuitamente.
O que é que tanto se criticou a respeito das manifestações recentes? Bom, como seu estopim foi um acidente aéreo em boa parte associável ao governo federal e como os manifestantes podiam ser considerados possíveis usuários de um meio de transporte que, de acordo com preconceitos facilmente refutáveis, é usado sobretudo pelos afluentes, o contra-argumento central dava a entender que ricos não têm direito a reclamar de nada.
Por quê? Ora, porque há pobres que têm mais do que reclamar, começando (e terminando) pela sua própria pobreza. De acordo com os que assim pensam, o único problema social, ou melhor, humano é a falta (às vezes nem absoluta, apenas relativa) de dinheiro, enquanto que, paradoxalmente, o único pecado capital consiste em tê-lo. Claro, diriam eles, pois os que têm só têm aquilo que pertence aos que têm menos. Nenhum nexo precisa jamais ser demonstrado, e todos sabem igualmente que, tão logo se instaure a homogeneidade absoluta, a tal da justiça social (que, como se viu no século passado, conduz ao ponto no qual ninguém mais tem esperança de ter nada), tudo estará resolvido.
Mesmo os que não achem exatamente isso ainda parecem acreditar que, a sociedades complexas como a nossa, é possível aplicar uma priorização simplificadora. Por que cuidar da malha aérea, que serve poucos, antes de pôr em ordem o transporte coletivo, que serve muitos?
De forma idêntica: por que pesquisar remédios para o câncer (que atinge em geral gente com mais de 60 anos) antes de tratar as cardiopatias (cujas vítimas estão na casa dos 50) e estas (ou a Aids) antes de acabar de vez com a malária? Como é que pode haver alta culinária ou até restaurantes razoáveis num planeta onde milhões passam fome?
Quando quem faz essas perguntas tem menos de dez anos, a gente explica. Se ele ou ela tem mais, aí já não adianta, nem vale a pena segredar-lhe que o contrário do auto-interesse esclarecido não é nem o altruísmo, nem o amor universal, mas a paranóia sanguinária.
Trocando em miúdos, a reação negativa, assustada e sarcástica à manifestação e aos manifestantes decorreu, não raro, dos velhos cacoetes mentais socialistas da antigüidade (séculos 19 e 20).
Suspeito, porém, que suas raízes sejam mais profundas. Pois, tendo em vista que os realmente pobres lidam com a natureza humana nua e crua e que os de fato ricos entendem a fungibilidade do que conta, a atribuição de todos os achaques humanos a diferenças de renda, um viés ou vício pequeno-burguês, vem se generalizando graças à classe-medianização crescente, se não ainda de todos os seus habitantes, pelo menos da mentalidade dominante no planeta.
A rigor, entre os grupos existentes, é só a classe média que se atormenta com determinados dilemas. É só ela que, através de seus representantes afinal legítimos, fica se dilacerando com questões como as de cima, que sofre de má consciência, que acha que deve se calar quando a maltratam porque "mais sofreu nosso tio Judas". Daí que, quando se trata dela, o perigo maior seja não o da censura externa (do regime militante e seus paladinos), mas, sim, o da interna: a autocensura. E esse medo, tão tipicamente suburbano, de reclamar, chamar atenção, armar um barraco é precisamente o que pauta e silencia as oposições.


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