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Crítica/teatro/"A Alma Boa de Setsuan"
Braz revigora peça clássica de Brecht
Com Denise Fraga à frente de elenco primoroso, montagem reduz caráter ideológico do texto e mostra atualidade do autor
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Ao sair de "A Alma Boa
de Setsuan", uma senhora se queixou à amiga: "Gosto de teatro com cenário mesmo, mais rico". "Mas se
você for pensar", disse a outra,
"tem um fundamento aí".
Brecht no teatro Renaissance: que heresia para os fundamentalistas épicos. E, no entanto, é justamente no reduto
do teatro burguês que a dialética faz sentido.
Uma história bem contada,
com alegria e teatralidade, por
uma trupe em harmonia, a
atenção para a fama do elenco e
o luxo da produção transcendem para a busca de um fundamento. O público selecionado,
encontrando a diversão que
veio buscar, sente-se instigado
enquanto cidadão a pensar em
saídas para o egoísmo e o arrivismo aparentemente inevitáveis do capitalismo.
Divertir, entenda-se, não
quer dizer disfarçar um incômodo dedo na ferida, assim como falta de luxo não quer dizer
falta de sofisticação.
A adaptação assinada pelo diretor Marco Antônio Braz e pelo ator Marcos Cesana faz com
que o texto soe menos como
slogan ideológico e mais como
um achado do momento. A pergunta da protagonista "como
posso ser boa se tenho que pagar o aluguel?" comove e faz rir
ao mesmo tempo.
Precisão chapliniana
Sem alarde, também, a eficácia e o bom gosto dos módulos
deslizantes que compõem a cenografia de Marcio Medina, da
luz de Wagner Freire, da trilha
sonora de Theo Werneck, do figurino de Verônica Julian e do
visagismo de Emi Sato, que vestem o palco com um orientalismo ágil e colorido, entre o kabuki e o mangá.
É claro que nada disso bastaria se a protagonista não tivesse
o carisma e o talento de Denise
Fraga. Brilha como Chen-Tê, a
prostituta da imaginária aldeia
chinesa Setsuan. A personagem
ganha dos deuses uma soma
para que abra sua loja de tabaco
como recompensa por sua bondade. Justamente por isso, tem
de aprender a ser má, em meio
a seu amado que a explora e aos
opressores que a ajudam, encarnando um alter ego masculino, o "primo" Chui-Ta.
A mistura de esperteza e ingenuidade, chapliniana na precisão dos gestos e na triangulação com a platéia, dessa atriz
que habituou seu público a vê-la enquanto porta-voz da população comum, faz com que Denise Fraga seja uma Chen-Tê
inesquecível, tão marcante
quanto à de Maria Della Costa,
que há cerca de 50 anos introduzia Bertolt Brecht no Brasil.
Elenco
Porém, o pulso firme de Braz
nivela todos os atores do elenco
por cima, possibilitando a Ary
França desenvolver uma divindade impagável, mistura de
Brecht com Jack Sparrow.
Joelson Medeiros encarna o
ternamente canalha aviador
Sun, o amado de Chen-Tê. Já
Maurício Marques faz Wang
com um notável desenho corporal. O ator Marcos Cesana,
por fim, é como um policial saído diretamente dos Keystone
Cops, em meio a um elenco primoroso.
Por fim, não haverá de ser
por acaso que, depois de seis
anos de insistência, a montagem estréie justamente às vésperas dos Jogos Olímpicos de
Pequim. O espetáculo vem
quando os olhos do mundo se
voltam para uma China onde a
ambigüidade do mercado contamina a utopia comunista e,
mais do que nunca, a lucidez
não dogmática de Brecht se faz
necessária para pensar o mundo. Os deuses sabem a quem
emprestam.
A ALMA BOA DE SETSUAN
Quando: sex., às 21h30, sáb., às
21h, dom., às 19h; até 28/9
Onde: teatro Renaissance (al. Santos, 2.233; Cerqueira César; tel. 0/
xx/11/3188-4147)
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 12 anos
Quanto: sex. e dom., R$ 60; sáb., R$ 80
Avaliação: ótimo
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