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COMIDA
Um mel sem RG
De sabor especial, o produto das abelhas indígenas sem ferrão, nativas do Brasil, não pode ser chamado de mel, nome exclusivo daquele produzido pelas abelhas estrangeiras, introduzidas no país a partir do século 19
JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL
Antes da chegada das abelhas
europeias e africanas, voavam
tranquilas pela flora brasileira
uruçus, mandaçaias, tiúbas e
jataís. Abelhas indígenas sem
ferrão, medo não causavam.
Seus méis eram os únicos disponíveis e alimentavam quem
se dispunha a coletá-los em
troncos ocos e ninhos no chão.
De certo não há um mel igual
ao outro, pela variedade de espécies e pela localização geográfica. Mas, uma vez provado o
das Meliponíneas, difícil se satisfazer novamente com o sabor do das introduzidas Apis
melliferas, produzido em larga
escala no Brasil por abelhas
africanizadas e encontrado em
qualquer supermercado.
O curioso é que o produto das
abelhas indígenas sem ferrão,
nativas do Brasil, não pode ser
chamado "simplesmente de
mel". "A norma do Mercosul,
que estabelece os padrões de
identidade e qualidade do mel,
define que mel é um produto
oriundo de abelhas melíferas,
que remete à Apis mellifera",
diz Carlos Turchetto Junior,
28, chefe da Divisão de
Inspeção de Leite e Derivados,
Mel e Produtos Apícolas do
Ministério da Agricultura.
"[O das abelhas indígenas]
Não é mel, porque a composição é muito diferente, é específico da América do Sul. Ao se
chamar simplesmente de mel,
estará se referindo ao de Apis."
Até 2004 o manejo de abelhas indígenas era proibido,
por serem espécies selvagens.
"Quem a domesticava e fazia
colmeia podia ser preso, crime
inafiançável. Olha o absurdo.
Tínhamos um patrimônio nacional, único no mundo, com
diferencial, e proibia-se o uso
para apenas permitir o da Apis
mellifera", diz Roberto Smeraldi, 49, diretor da Oscip Amigos
da Terra - Amazônia Brasileira.
"Saímos da clandestinidade
da criação, porém estamos nessa transição. Pode-se manejar e
produzir mel, mas não há um
RG para ele. É um produto sem
nome nem sobrenome. Não pode ser chamado de mel."
O regulamento em vigor, de
1952, está em revisão. "Esperamos que a nova versão seja publicada até o final do ano. Lá está previsto o mel de abelha indígena", diz Turchetto Junior.
Smeraldi compara o tratamento ao mel de abelhas indígenas sem ferrão à proliferação
do eucalipto na silvicultura.
"Não se pode manejar a floresta
nativa, o mogno, o jatobá, a andiroba, que são de grande qualidade e de valor altíssimo. Usa-se o eucalipto, da Austrália, e as
espécies nativas ficam para o
mercado clandestino."
Mais úmido e ácido
Menos adocicado, o mel de
Meliponíneas tem um toque
ácido que torna seu sabor especial. A composição físico-química, de fato, é diferente.
"O mel das abelhas indígenas
é bem mais úmido que o de Apis
mellifera [europeia] e o de Apis
mellifera scutellata [africana].
E é mais ácido", diz Paulo Nogueira-Neto, 87, professor titular emérito da USP e um
dos maiores especialistas em abelhas indígenas sem ferrão.
"Hoje, só há mel
da abelha africana.
Praticamente não
existe mais europeia aqui. A Apis
produz mais, mas o
mel das indígenas
vale dez vezes mais,
porque tem um gosto
diferente e possui mais
antibióticos. Isso foi constatado pelo Instituto Adolfo
Lutz."
Na tabela de parâmetros para o controle de qualidade do
mel, a umidade exigida para a
Apis é de, no máximo, 20% -as
indígenas chegam a 35%. E é
necessário um mínimo de açúcares redutores: 65%, na Apis
-nas Meliponíneas é de 50%.
Esses índices influenciam a
vida do mel. A concentração
maior de água favorece a fermentação, diminuindo a vida
útil. "Muitos identificam fermentação com algo necessariamente ruim", diz o diretor da
Amigos da Terra. "Para mim, é
exatamente a coisa extraordinária do mel de abelha nativa,
porque isso proporciona um leque de usos em cada estágio."
O chef Alex Atala, do D.O.M.,
já usou mel de jataí em seu menu-degustação, sobre uma sardinha grelhada. "São méis de
notas particulares e complexas,
evito interferir no sabor dele."
Metamorfose do mel
Se o que difere o mel das abelhas indígenas, além do sabor, é
a umidade, há produtores que
optam pela desumidificação.
"Foi a orientação que muitos
receberam de órgãos públicos,
até de governos estaduais", diz
Smeraldi. "Ou seja, para o índio
ser chamado gente, tem de pintar a pele dele e fazê-lo mais
branquinho. É essa a resposta
simplista inicial. Você admite a
diversidade desde que o mel se
torne próximo do outro. Ele
não pode ser como é", lamenta.
Para o professor emérito da
USP, que tem "umas 500 colmeias" só para observação e
pesquisa, o macete "tem suas
vantagens", porque diminui a
fermentação, facilitando a armazenagem, "mas perde" no
quesito sabor. E não só.
Quando a desumidificação é
feita por meio de processos associados a aquecimento, há outro porém: "Se você o aquece,
ele perde o valor nutricional e
os antibióticos naturais", diz
Marilda Cortopassi-Laurino,
59, pesquisadora do Laboratório de Abelhas da USP. "Vira
um açúcar. E é muito caro para
ser usado como adoçante."
"O problema não é técnico, é
de boa vontade. [A demora na
definição de uma legislação específica] É por causa de uma lei.
A lei do menor esforço", diz o
professor Nogueira-Neto.
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