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São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2003

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E AGORA, COMPANHEIRO?

Oscar Niemeyer comenta a política pós-Lula

"Quando a miséria cresce, só a revolução"

DA REPORTAGEM LOCAL

Na entrevista a seguir, mantendo o clima sereno de sua novela "E Agora?", o arquiteto Oscar Niemeyer, 95, fala, entre outros assuntos, de suas expectativas e da situação atual do governo Lula, da reforma agrária e de sua literatura, escrita, como gosta de dizer, "modestamente, com o meu pequeno vocabulário, como que conversando".
(ROGÉRIO EDUARDO ALVES)
 

Folha - É inevitável que a leitura de sua novela "E Agora?" remeta à sua biografia...
Oscar Niemeyer -
Lucas representa os meus velhos camaradas do PCB, ainda a pensar na revolução e no mundo injusto em que viviam.

Folha - Quando surgiu a idéia para "E Agora?"?
Niemeyer -
Um dia, como outro qualquer... Na verdade, gostaria de ser escritor. Como me agradava ver o Jorge Amado, meu amigo, a escrever os seus romances, a imaginar as figuras mais vadias e surpreendentes!

Folha - A impressão que se tem ao ler "E Agora?" é que o ato de escrever serviu para o sr. organizar seus pensamentos a respeito do momento atual...
Niemeyer -
Eu não sou escritor. O meu livro foi mais um desabafo, exprime a vontade de deixar claro o que penso sobre a vida e o mundo.

Folha - Com Lula no poder é hora de deixar as armas revolucionárias e esperar?
Niemeyer -
Sempre disse que o Lula pretende melhorar o regime capitalista, o que para nós comunistas é impossível. Mas reconhecemos que em alguns pontos sua atuação pode ser útil. Refiro-me, por exemplo, à unificação da América Latina, uma tarefa que agora, com a participação dos presidentes da Argentina e da Venezuela, se faz possível. O problema do Mercosul parece bem encaminhado; e a própria política externa é correta. Quanto à política interna, aguardamos as mudanças necessárias à defesa e ao desenvolvimento da economia nacional.
Acredito muito no inesperado. Com uma invasão na Amazônia -hipótese por todos os motivos indesejável-, tudo se modificaria, reunindo todos os brasileiros, civis e militares, a lutarem por nossa soberania, mais sensíveis às idéias de liberdade e justiça que defendemos.

Folha - Passado um pouco da "posse espetacular" de Lula, como o sr. entende o governo?
Niemeyer -
Mesmo satisfeitos de vermos um operário no poder, faltam definições por parte do governo atual. A questão da reforma agrária, por exemplo, é para nós fundamental. Ah, como nos revolta ver milhares de brasileiros a caminharem pelas estradas em busca do teto e da terra que há muito lhes deviam pertencer!
Ah, quando a miséria cresce e a esperança foge do coração dos homens, só a revolução!

Folha - Ao mesmo tempo em que Lucas parece cansado e paciente, o sr. pronuncia-se em favor da revolução cubana e de Fidel Castro por meio de uma nota final. O livro e a nota não são antagônicos?
Niemeyer -
Acho que não. Como seria mais difícil repetir Fidel neste continente imenso que é o nosso país!

Folha - Mais uma vez, seu sósia surge na história, a exemplo de sua coletânea anterior "Meu Sósia e Eu". Como surgiu a idéia desse personagem de si mesmo?
Niemeyer -
Talvez corresponda à lembrança de antigos camaradas do velho PCB, radicais, incorruptíveis, voltados para a luta política como uma religião.
O partido para mim foi uma escola, a maneira de ver a vida de forma mais humana e solidária. É claro que sem o otimismo de quem pensa resolver o problema do mundo e do ser humano tão insignificante.

Folha - O sr. tem o costume de escrever desde quando?
Niemeyer -
Quando faço um projeto e chego a uma idéia mais definida, escrevo um texto, explicando o meu projeto. E, se, ao lê-lo, os argumentos me parecem frágeis, volto à prancheta outra vez. Na maioria dos casos, é com essa explicação que encontro aprovação para os meus trabalhos. Ninguém entende de arquitetura, e muito menos dos pequenos segredos que ela apresenta.

Folha - Há algum novo projeto?
Niemeyer -
Estou escrevendo um livro sobre as casas onde morei. Como me comove lembrar as coisas antigas, a família, os amigos, as alegrias e tristezas das nossas pobres vidas! E, ao correr da pena, sem a preocupação de fazer literatura, mas apenas de me distrair um pouco.

Folha - O sr. já encontrou sua São Pedro da Aldeia, como Lucas?
Niemeyer -
O trabalho me ocupa tanto que, na verdade, o lugar onde eu fico, trabalho, encontro os amigos, assisto às aulas de filosofia e cosmologia, é o meu escritório, debruçado sobre a praia de Copacabana, vendo ao longe as montanhas de Niterói, de onde veio meu avô Ribeiro de Almeida, muitos anos atrás.

Folha - De que forma o sr. enxerga sua composição literária em relação às linhas arquitetônicas?
Niemeyer -
No campo da arquitetura me sinto à vontade, tranquilo, satisfeito com o que vou realizar. Ao fazer um texto, nada disso acontece; e é modestamente, com o meu pequeno vocabulário, como que conversando, que procuro escrever.

Folha - Vimos o sr. no enterro do empresário e jornalista Roberto Marinho, criador das Organizações Globo, morto dia 6/8 aos 98 anos. O sr. se importaria de falar como era a relação entre vocês?
Niemeyer -
Uma única vez me lembro ter estado com Roberto Marinho, levado por Darcy Ribeiro, que com ele queria conversar. Mas, como comunista, sempre levei em conta a maneira solidária com que defendia os seus funcionários perseguidos pela polícia política. E isso para mim é fundamental.


E AGORA?. De: Oscar Niemeyer. Editora: Paz e Terra. Quanto: R$ 14 (60 págs.).


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