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LIVROS
Crítica/"Última Noite"
Em contos, autor flagra o que falta na vida miúda de todo dia
Relações amorosas são foco de olhar atento do contista tardio James Salter
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
os 82 anos e com mais
de uma dezena de livros
escritos, entre romances, contos e memórias, o pouco conhecido escritor americano James Salter é dessas raras
boas surpresas que a literatura
às vezes nos reserva.
No Brasil, a Imago publicou o
romance "Um Esporte e um
Passatempo" e o livro de memórias "Dias Intensos", sobre
suas experiências como piloto
de guerra. E a Companhia das
Letras acaba de lançar "Última
Noite", coletânea extraída de
seus dois livros de contos, o primeiro de 1988. Salter é um contista tardio, o que talvez explique a intensidade enxuta de
quem não tem mais tempo a
perder com nada acessório.
Seus contos se inserem na
tradição marcante do realismo
americano do século 20, debruçado sobre as classes médias
urbanas, famílias instaladas em
casas confortáveis e sentimentos humanistas -uma mitologia inteira já se fez de texto,
imagem e palco em torno desse
universo. A indústria cultural
transformou isso em seu grande produto, com o final feliz de
sempre, falso e divertido. Já a
boa literatura existe para nos
dizer o que falta. Esse mundo
-o da falta- é o de Salter.
Seu foco é a relação amorosa,
nas mãos dele um campo de
testes da transcendência possível na vida miúda de todo dia.
Seu texto avança por lacunas
súbitas entre uma frase e outra,
a respiração suspensa, o olho
atento no detalhe -há uma assustadora ausência de ênfase
em tudo que ele nos conta, quase sempre traições que acontecem irresistíveis e que se fingem não serem escolhas. Em
"Cometa", a segunda mulher de
Phil, bêbada, acusa-o numa festa de ter abandonado a primeira ("Simplesmente foi embora.
Quinze anos de casado, desde
os dezenove"). Na cena final,
voltando com a mulher para casa, o marido procura um cometa no céu; e vê a mulher "tropeçar nos degraus da cozinha".
Num jantar festivo entre dois
casais ("Meu senhor, Vós"), a
chegada do poeta Brennan
("Um bêbado, um fracassado e
um grande gênio. E você?
Quem você é? Mais uma dona
de casa?") desencadeia em Ardis uma ansiedade difusa e erotizada cujo ponto de contato é o
cachorro do poeta, que passa a
segui-la nos passeios de bicicleta; tenta devolvê-lo ao dono,
sem encontrá-lo, mas alguma
coisa se corroeu em sua vida.
O tema homoerótico aparece
em "Entregar", quando Anna
pede ao marido que ele abandone um amigo, "para sempre";
com pequenas mentiras, o
equilíbrio do casal se restabelece. "Platina" é o caso de um homem que se esforça para simular um amor verdadeiro quando o sogro milionário exige que
ele largue a amante.
O tema da volta do amor antigo aparece em "Palm Court" e
"Bangcoc"; no primeiro, o tempo fez o trabalho sujo de apagar
a paixão, não sem seqüelas; no
segundo, o homem se ressente
da traição da mulher fulgurante que reaparece ("Eu fiz a tolice de querer experimentar alguma coisa diferente. Não sabia
que a verdadeira felicidade é ter
a mesma coisa o tempo todo"),
e resiste a ela. Há um toque de
inocência infantil no mundo
amoroso dos contos, como se
Salter flagrasse em pinceladas
cortantes a imaturidade dos
que não têm armas para lidar
com a utopia que parece sempre estar ao alcance da mão.
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor do romance "O Filho Eterno" (Record).
ÚLTIMA NOITE
Autor: James Salter
Tradução: Samuel Titan Jr.
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (176 págs.)
Avaliação: ótimo
TRECHOS
Eu fiz a tolice de querer
experimentar alguma coisa
diferente. Não sabia que a
verdadeira felicidade é ter a
mesma coisa o tempo todo
Do conto "Palm Court"
Simplesmente foi embora.
Quinze anos de casado, desde
os dezenove
Do conto "Cometa"
Um bêbado, um fracassado
e um grande gênio. E você?
Quem você é? Mais uma dona
de casa?
Do conto "Meu Senhor, Vós"
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