São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2001

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NA BOCA DO POVO

Peleja entre George Bush e Osama bin Laden já rendeu, no Nordeste, cerca de 90 folhetins diferentes

Tragédia americana reacende os cordéis

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

É o fim do mundo. O atentado terrorista de Nova York fez a literatura de cordel estremecer o Nordeste como nos velhos tempos, quando era uma espécie de CNN com graça e rima, capaz de levar aos grotões as tragédias internacionais e conquistas épicas da humanidade, como a chegada dos americanos à lua.
Mal abaixou a poeira das torres, a dicção apocalíptica dos poetas do ramo já fazia a sua zoada nas feiras e mercados do Recife, Caruaru (PE), Juazeiro do Norte (CE), Fortaleza e Canindé (CE), entre outras praças de resistência desse gênero herdado dos árabes da Península Ibérica.
"Aí mais sangue inocente/ Será enfim derramado/ E o anjo do apocalipse/ Num corcel negro montado/ Quebra o selo da guerra/ E o mundo está desgraçado", alardeou Klévisson Viana, 28, da novíssima geração de cordelistas, instantes depois do ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro deste ano.
Com o irmão Arievaldo, 34, Klévisson compôs "O Sangreto Ataque Terrorista que Abalou os EUA", que já vendeu cerca de 5.000 folhetos, do dia seguinte ao atentado até a última quarta-feira, quando os autores declamavam suas sextilhas para os romeiros de São Francisco das Chagas, em Canindé (CE).
Os dois cordelistas comandam em Fortaleza a Tupynanquim Editora, responsável pela publicação tanto de novos poetas como de clássicos do gênero da literatura de cordel. No Ceará, a oficina divide com a Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte, uma das mais antigas do país, a maior produção do gênero no momento naquele Estado.
A peleja do presidente americano George W. Bush com Osama bin Laden já provocou, na região Nordeste, segundo levantamento feito pela Folha junto aos poetas e gráficas especializadas, pelo menos 90 folhetos de cordel.
"Fazia tempo que eu não via tanta procura por um assunto só", disse Marcelo Soares, 47, poeta, artista da xilogravura e dono da Folheteria Cordel, oficina de Timbaúba, no interior pernambucano.
"Na hora da tragédia, o cordel cresce feito o cão chupando manga", acentua, com expressão superlativa, dosagem de intensidade do lugar.

Tecnologia x perversidade
Em "A Guerra do Fim do Mundo entre a Seita Taleban e os EUA -Para Eles o Grande Satã", Soares, como a maioria dos cordelistas que trata do assunto, aproveitou para cutucar a megalomania do império de Bush.
"Os americanos abusaram muito da tecnologia da guerra e foram surpreendidos pela perversidade da mente humana", larga a sua teoria o poeta.
Da mesma Timbaúba, saiu também, no perigo da hora, como buzinaria a emergência histórica, "A Dolorosa Peleja de Osama bin contra Bush", de Pedro Américo de Faria. "Tio Sam criou Osama/ Pra combater o comunismo/ Deu-lhe armas e dinheiro/ Atiçou-lhe o fanatismo", diz o folheto, ao lembrar que o terrorista, agora o mais procurado do mundo, é cobra criada pelo império norte-americano.
Em Caruaru, cuja feira ao ar livre supera qualquer mercado persa, o poeta Olegário Fernandes, sangue ibérico do agreste, continua na mesma pisada e senta a pua nas forças de George W. Bush. Seu folhetim "O Atentado Terrorista e o Nosso Sofrimento" mostra alguns dos reflexos do chafurdo internacional para o povo nordestino.
Mesmo com incontáveis parabólicas, divertidos enfeites de tantos telhados no sertão nordestino -normalmente adquiridas pelos filhos migrantes que moram em São Paulo-, o cordel tem o efeito de sacramentar um ocorrido. Se não deu no folheto...
"O caboclo vê na TV; uma, duas, três vezes; aquele avião primeiro que derrubou o prédio; depois a segunda torre, valha-me Deus, mas não tem a noção, naquele instante do que seja o bem, do que seja o mal", disse Soares, folhetinista de mancheia.
A maior novidade da vida em em verso, crônica de costumes ou geopolítica do terror, é mesmo a moralidade que embute o crime e castigo possível, regulamento interestadual, contrato social dos desejos, administráveis e estudados poréns da inquietude mediável. Falei difícil? Então eu amo.
Antes, porém, ajoelho e rezo.


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