São Paulo, sábado, 06 de outubro de 2001

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"A Última Carta" passa-se na Ucrânia dos anos 40, sob invasão do Exército alemão

A ficção da guerra


O documentarista norte-americano Frederick Wiseman, 71, realiza este ano seu primeiro filme baseado em obra literária


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Que contradição, só a guerra fez o mais renomado dos documentaristas norte-americanos migrar para a ficção.
Frederick Wiseman, 71, começará a filmar, na próxima segunda, em Paris, "A Última Carta". Baseado em "Life and Fate" (Vida e Destino), texto do autor ucraniano Vasily Grossman (1905-1964). O filme é ambientado num vilarejo da Ucrânia dos anos 40, invadido pelos soldados alemães.
De lá, uma médica judia -interpretada pela decana da Comédie Française Catherine Samie- escreve ao filho na linha de combate a carta que será a última comunicação entre os dois.
Ela resume sua vida e os derradeiros dias na vila em que judeus, delatados por vizinhos russos e ucranianos, passam a contar em horas o tempo para o fim.
"Infelizmente essa espécie de acontecimentos que pensávamos haver terminado com a Segunda Guerra existe ainda, e os atentados a Nova York são um exemplo da maneira como matamos gente que nada tem a ver com a guerra. Vivemos numa época em que se pode matar muito facilmente. Neste sentido, o filme não é histórico, mas relacionado aos acontecimentos atuais", diz Wiseman.
Notório por uma obra -33 filmes- que esmiuçou as principais instituições norte-americanas com inédito olhar crítico, Wiseman é o único cineasta do país que já teve um filme proibido. "Titicut Follies" (67), sobre o tratamento dispensado aos doentes em um hospital psiquiátrico de Massachusetts, foi considerado invasivo à privacidade de pessoas alienadas e vetado para apresentações públicas por 25 anos. Nestas quase três décadas, o cineasta formado em direito lutou pela liberação do filme, obtida em 92, invocando a Primeira Emenda.
De Paris, por telefone, Wiseman falou à Folha sobre direitos civis e política na América pós-ataques.

Folha - O sr. acredita que a relação entre o Estado e os cidadãos nos EUA sofrerá mudanças definitivas depois dos atentados?
Frederick Wiseman -
Há graves questões a discutir em torno dos direitos civis após os atentados, mas elas não estão resolvidas. A polícia deverá ter mais poder, mas é certo que o equilíbrio entre o poder da polícia e o direito dos cidadãos deve continuar. Se, por um lado, há quem defenda o direito draconiano, por outro, os que se interessam pela defesa dos direitos civis têm muito apoio.

Folha - Mas há quem considere ameaçados os valores fundamentais da democracia americana.
Wiseman -
Podemos dizer isso se estivermos completamente paranóicos. Não estou tão paranóico assim e acho que é preciso esperar. Se houver ameaça, será necessário lutar contra ela. Devemos nos lembrar que, há dois anos, a Inglaterra sofreu atentados, e os direitos civis não foram eliminados. A mesma coisa ocorreu na França e na Alemanha. Nos Estados Unidos, foi a primeira vez que isso aconteceu, e é natural que as pessoas tenham uma reação de muito espanto. Não sei se há uma diferença entre minha opinião e meu desejo, mas, embora algumas mudanças já existam, não acredito que os direitos civis estejam ameaçados, porque sua tradição é muito forte nos EUA.

Folha - O crescimento do preconceito a estrangeiros nos EUA demonstra incapacidade de discernimento dos norte-americanos?
Wiseman -
Em todos os países há pessoas racistas. Mas acredito que a maioria dos americanos é capaz de fazer uma clara distinção e não pensa que cada árabe na rua é um terrorista. Bush foi a uma mesquita, numa visita muito simbólica, e todos os canais de TV exibiram programas lembrando que é preciso estar atento para não confundir as coisas. Obviamente houve incidentes racistas, mas isso não está em toda parte.

O sr. citou o presidente Bush e os canais de TV. Concorda com a hipótese de que há censura à mídia e tentativa de manipulação da opinião pública em favor do governo?
Wiseman -
Os proprietários dos órgãos de imprensa norte-americanos têm políticas tão diferentes e existem tantos jornais, semanários, canais de TV, emissoras de rádio e tantos meios pelos quais as pessoas podem se exprimir que não há nenhuma possibilidade de o governo ou qualquer pessoa conseguir controlar a imprensa. Ninguém tem tanto poder. Mas é rigorosamente verdadeiro que num momento de crise como o atual muita gente fica mais patriótica e não quer, nesta hora, criticar o governo, até porque é preciso acreditar que ele será capaz de nos conduzir a uma solução para esta situação tão grave.

Folha - Concorda com a avaliação de que os EUA têm parte da culpa nos atentados, por sua política externa, sobretudo a relação com Israel, que conduziu ao ponto de tensão culminado nos ataques?
Wiseman -
Acho isso ridículo. É uma forma de novo anti-semitismo, que coloca os judeus por trás de todos os problemas mundiais. Isso simplifica demais a situação. É inegável que ao longo da história os Estados Unidos fizeram coisas condenáveis, mas não são o único país nem o único poder no mundo a ter feito coisas estúpidas. Não acredito que a questão do Oriente Médio seja a causa desses atentados e, ainda que o fosse, temos de observar que todas as vítimas foram pessoas inocentes, e não membros do governo. É um crime horrível atacar pessoas que querem apenas prosseguir em sua vida cotidiana e não têm nada a ver com a atitude americana em relação ao exterior.

Folha - O sr. acredita que a extrema direita americana possa ter alguma relação com os atentados?
Wiseman -
Isso é o máximo da paranóia. Se posso ter certeza de uma coisa é que os conservadores americanos não têm nada a ver com os atentados. Acharia isso cômico, se não fosse tão grave. Quem diz isso não compreende nada a respeito dos Estados Unidos. Mesmo se cometemos erros graves contra outros países, todos os problemas do mundo não podem ser debitados aos EUA.


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