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"A Última Carta" passa-se na Ucrânia dos anos 40, sob invasão do Exército alemão
A ficção da guerra
O documentarista norte-americano Frederick Wiseman, 71, realiza este ano seu primeiro filme baseado em obra literária
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SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Que contradição, só a guerra fez
o mais renomado dos documentaristas norte-americanos migrar
para a ficção.
Frederick Wiseman, 71, começará a filmar, na próxima segunda, em Paris, "A Última Carta".
Baseado em "Life and Fate" (Vida
e Destino), texto do autor ucraniano Vasily Grossman (1905-1964). O filme é ambientado num
vilarejo da Ucrânia dos anos 40,
invadido pelos soldados alemães.
De lá, uma médica judia -interpretada pela decana da Comédie Française Catherine Samie-
escreve ao filho na linha de combate a carta que será a última comunicação entre os dois.
Ela resume sua vida e os derradeiros dias na vila em que judeus,
delatados por vizinhos russos e
ucranianos, passam a contar em
horas o tempo para o fim.
"Infelizmente essa espécie de
acontecimentos que pensávamos
haver terminado com a Segunda
Guerra existe ainda, e os atentados a Nova York são um exemplo
da maneira como matamos gente
que nada tem a ver com a guerra.
Vivemos numa época em que se
pode matar muito facilmente.
Neste sentido, o filme não é histórico, mas relacionado aos acontecimentos atuais", diz Wiseman.
Notório por uma obra -33 filmes- que esmiuçou as principais instituições norte-americanas com inédito olhar crítico, Wiseman é o único cineasta do país
que já teve um filme proibido.
"Titicut Follies" (67), sobre o tratamento dispensado aos doentes
em um hospital psiquiátrico de
Massachusetts, foi considerado
invasivo à privacidade de pessoas
alienadas e vetado para apresentações públicas por 25 anos. Nestas quase três décadas, o cineasta
formado em direito lutou pela liberação do filme, obtida em 92,
invocando a Primeira Emenda.
De Paris, por telefone, Wiseman
falou à Folha sobre direitos civis e
política na América pós-ataques.
Folha - O sr. acredita que a relação entre o Estado e os cidadãos
nos EUA sofrerá mudanças definitivas depois dos atentados?
Frederick Wiseman - Há graves
questões a discutir em torno dos
direitos civis após os atentados,
mas elas não estão resolvidas. A
polícia deverá ter mais poder, mas
é certo que o equilíbrio entre o poder da polícia e o direito dos cidadãos deve continuar. Se, por um
lado, há quem defenda o direito
draconiano, por outro, os que se
interessam pela defesa dos direitos civis têm muito apoio.
Folha - Mas há quem considere
ameaçados os valores fundamentais da democracia americana.
Wiseman - Podemos dizer isso se
estivermos completamente paranóicos. Não estou tão paranóico
assim e acho que é preciso esperar. Se houver ameaça, será necessário lutar contra ela. Devemos
nos lembrar que, há dois anos, a
Inglaterra sofreu atentados, e os
direitos civis não foram eliminados. A mesma coisa ocorreu na
França e na Alemanha. Nos Estados Unidos, foi a primeira vez que
isso aconteceu, e é natural que as
pessoas tenham uma reação de
muito espanto. Não sei se há uma
diferença entre minha opinião e
meu desejo, mas, embora algumas mudanças já existam, não
acredito que os direitos civis estejam ameaçados, porque sua tradição é muito forte nos EUA.
Folha - O crescimento do preconceito a estrangeiros nos EUA demonstra incapacidade de discernimento dos norte-americanos?
Wiseman - Em todos os países há
pessoas racistas. Mas acredito que
a maioria dos americanos é capaz
de fazer uma clara distinção e não
pensa que cada árabe na rua é um
terrorista. Bush foi a uma mesquita, numa visita muito simbólica, e
todos os canais de TV exibiram
programas lembrando que é preciso estar atento para não confundir as coisas. Obviamente houve
incidentes racistas, mas isso não
está em toda parte.
O sr. citou o presidente Bush e os
canais de TV. Concorda com a hipótese de que há censura à mídia e
tentativa de manipulação da opinião pública em favor do governo?
Wiseman - Os proprietários dos
órgãos de imprensa norte-americanos têm políticas tão diferentes
e existem tantos jornais, semanários, canais de TV, emissoras de
rádio e tantos meios pelos quais
as pessoas podem se exprimir que
não há nenhuma possibilidade de
o governo ou qualquer pessoa
conseguir controlar a imprensa.
Ninguém tem tanto poder. Mas é
rigorosamente verdadeiro que
num momento de crise como o
atual muita gente fica mais patriótica e não quer, nesta hora, criticar
o governo, até porque é preciso
acreditar que ele será capaz de nos
conduzir a uma solução para esta
situação tão grave.
Folha - Concorda com a avaliação
de que os EUA têm parte da culpa
nos atentados, por sua política externa, sobretudo a relação com Israel, que conduziu ao ponto de tensão culminado nos ataques?
Wiseman - Acho isso ridículo. É
uma forma de novo anti-semitismo, que coloca os judeus por trás
de todos os problemas mundiais.
Isso simplifica demais a situação.
É inegável que ao longo da história os Estados Unidos fizeram coisas condenáveis, mas não são o
único país nem o único poder no
mundo a ter feito coisas estúpidas. Não acredito que a questão
do Oriente Médio seja a causa
desses atentados e, ainda que o
fosse, temos de observar que todas as vítimas foram pessoas inocentes, e não membros do governo. É um crime horrível atacar
pessoas que querem apenas prosseguir em sua vida cotidiana e não
têm nada a ver com a atitude americana em relação ao exterior.
Folha - O sr. acredita que a extrema direita americana possa ter alguma relação com os atentados?
Wiseman - Isso é o máximo da
paranóia. Se posso ter certeza de
uma coisa é que os conservadores
americanos não têm nada a ver
com os atentados. Acharia isso
cômico, se não fosse tão grave.
Quem diz isso não compreende
nada a respeito dos Estados Unidos. Mesmo se cometemos erros
graves contra outros países, todos
os problemas do mundo não podem ser debitados aos EUA.
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