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CINEMA/ARTIGO
Roubar a beleza árida do sertão seria um esforço inútil
VICENTE AMORIM
ESPECIAL PARA A FOLHA
Críticos de cinema são parte
fundamental de uma cinematografia -tem responsabilidade histórica igual à dos diretores ou produtores; afinal, a opinião legada ao futuro é a deles- e
filme sem crítica não faz parte da
cultura. Há que se ter noção dessa
responsabilidade.
A boa crítica, inclusive, não é
obrigatoriamente favorável -é
aquela que provoca reflexão. Ela
é, portanto, tão indispensável para o realizador quanto para quem
vai escolher onde passar duas horas de sua noite. No entanto algumas críticas ao cinema que se faz
hoje em dia no Brasil cheiram ou
a uma vontade irresistível à alienação ou a um patrulhamento
ideológico de fazer inveja aos que
se manifestaram contra a tropicália e a guitarra elétrica ou contra
"A Idade da Terra".
O lado alienado não se dá nem
ao trabalho de analisar os filmes.
Este lado nos repete a sinopse, rotula o filme como "chato" e o dispensa como quem recusa um torresmo no botequim -ou, por outra, o elogia com falsa inteligência:
"interessante". O trabalho investido num filme é tão imenso que o
mínimo que se espera das críticas,
boas ou más, é um mínimo de esforço intelectual.
O lado patrulhado é muito mais
complexo.
Deste lado, alguns críticos tomam para si a "defesa" do cinema
novo, tentando contrapô-lo ao cinema de hoje e colocando-o como uma espécie de movimento
organizado contra a indústria.
Nada poderia ser mais equivocado. O cinema novo (e isso me foi
dito por vários de seus membros
com os quais trabalhei, como
Leon Hirszman, Cacá Diegues e
Arnaldo Carrilho) tinha, ao contrário do que colocam esses senhores, a pretensão de ser industrialmente viável -é, por exemplo, difícil assistirmos a um filme
do movimento no qual não haja
agradecimento aos donos do
Banco Nacional.
Invenção e originalidade não
eram armas contra a viabilidade
econômica, mas meios para alcançá-la.
"O cinema brasileiro peca por
exagerar na escalação de rostos
conhecidos da televisão", li recentemente. Quando se critica o "casting" de alguns filmes feitos hoje,
me vem à lembrança o elenco de
"Terra em Transe": Jardel Filho,
Paulo Autran, José Lewgoy, Paulo
Gracindo, Danuza Leão, Telma
Reston, Mário Lago... Eram todos
conhecidíssimos na época -quase o supra-sumo do "star system"
tupiniquim.
Seria o equivalente a se fazer hoje um longa-metragem com todo
o elenco da novela das oito -e
nem por isso se acusa o filme de
Glauber de "pouco original". E
"Terra em Transe" é só um dos
exemplos.
Muitos filmes com personagens
pobres são criticados por terem
no seu elenco "atores bonitos". Isso é, com certeza, um misto de ignorância com pobreza -de espírito. Por que personagens pobres
têm de ser, obrigatoriamente,
"feios"? O que é feio? Quem é bonito? Será que Yoná Magalhães
era "feia" o suficiente para fazer
"Deus e o Diabo na Terra do Sol"?
Além da confusão filosófica que
fazem, esses críticos demonstram
um enorme desejo de se sentirem
mais "bonitos" que personagens
pobres -pois só assim podem
pôr a funcionar toda a sua culpa, o
seu recalque, o seu paternalismo e
a sua piedade.
Chega-se ao extremo de tentar
transformar uma imensa região
do Brasil em gênero cinematográfico. Sim, porque para esses críticos o Nordeste é um gênero -como são comédia-romântica, ação
ou terror. Incapazes de analisar
histórias passadas nessa região
por seu valor intrínseco, não conseguem ver as personagens desses
filmes com suas contradições, riquezas e mazelas próprias.
Para esses críticos, personagem
de filme nordestino tem de ser um
estereótipo do que eles consideram o "homem nordestino"
-como se isso existisse!
Há uma cobrança para que esses personagens sirvam como
metáfora para todo um povo. Não
há como reunir num só personagem as características de todo um
povo! Os personagens dos filmes
realizados nessa região do país
têm de ser analisados à luz da história que cada filme está contando e não como objeto de estudo
sociológico, o que reduziria cada
personagem a um signo, roubando dele toda a profundidade dramática.
O Nordeste não é um gênero
-é uma região do nosso país- e,
portanto, qualquer história pode
se passar por lá, não apenas as que
desejam alguns. O fato de o Nordeste ser a região mais pobre do
nosso país também não nos obriga a fazer por lá apenas filmes
"engajados". Até porque, quem
fez dever de casa sabe disso, todo
filme é um filme político.
Para esses críticos, filme com
personagens pobres tem de ter,
também, fotografia e linguagem
pobres, senão é acusado de sofrer
de "estética publicitária" -aberração que desqualifica imediatamente qualquer um.
Desafio qualquer pessoa, mesmo sem nenhum conhecimento
técnico, a postar-se no meio do
sertão com uma polaróide e fazer
uma má foto. A luz, o relevo e a
textura da paisagem são únicos.
Por mais concentrado que seja
um filme em seus personagens,
ele, sendo passado no sertão, deixa ver a paisagem -roubar-lhe
sua beleza árida seria um esforço
tão grande quanto equivocado e
inútil.
Vicente Amorim é cineasta, diretor de
"O Caminho das Nuvens"
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