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"NOTURNO DO CHILE"
Autor, morto em 2003, enfrenta dilema da era pós-Pinochet
Roberto Bolaño faz elegia de pátria literária impossível
FRANCISCO FOOT HARDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
São 110 páginas num só fôlego,
por isso mesmo num só parágrafo. Imagine que você está mal,
não lhe resta muito tempo, e agora mesmo deva passar em revista
todos os acontecimentos de sua
desafortunada existência, você
que foi poeta e crítico literário de
ponta, que serviu à inteligência do
país como poucos de sua geração.
Imagine-se no lugar deste protagonista agônico, padre Lacroix.
Sua memória confunde-se com a
da história do país, "entre um descampado e um crepúsculo interminável". Não há mais testemunha do seu solilóquio: há apenas
este fantasma renitente do "jovem
envelhecido" que lhe perturba as
imagens, afeta o juízo. "Noturno
do Chile" pode ser lido como uma
elegia para um país impossível,
para uma pátria literária que é só
pesadelo e contra-senso.
É possível falar de "literatura
chilena" após Pinochet?, parece-nos indagar Roberto Bolaño,
atualizando os termos de Adorno,
mas desviando o discurso da metalinguagem filosofante, da novela-ensaio, em prol de uma ficção
que corrói todas as ilusões de estéticas redentoras ou de romances
da denúncia catártica. Ficção do
real arruinado pela contra-revolução na América Latina, definida
pelo autor em conto recente como
"o manicômio da Europa". Ao
que acrescenta: "O manicômio,
há mais de 60 anos, está queimando em seu próprio azeite, em sua
própria gordura". Literatura "visceral-realista", como costumou-se chamar, no mundo hispano-americano, a corrente de poetas e
escritores exilados, entre os quais
Bolaño, que se formou no México, em meados dos anos 70. Denominação adequada porque a
aspereza dessa prosa torrencial
incorpora-se às sensações corporais mais primárias.
A violência é internalizada em
imagens rápidas e ríspidas, tragicômicas, absurdamente triviais
em sua cotidianidade, que, num
repente, irrompem como um soco no estômago capaz de quebrar
nossos automatismos perceptivos, mas sem nunca transpor o limiar de suas terríveis cadeias, de
seus equívocos sinistros.
Se "Noturno" consegue enfrentar o duro dilema da ficção pós-desastre no Chile, "Estrella Distante" (1996) tinha sido o romance inaugural dessa linhagem, trazendo para a primeira cena os
efeitos da repressão genocida sobre toda uma geração, não como
prática social ou política, mas como experiência mental e corpórea
imediata. Já nos ótimos contos de
"Putas Asesinas" (2001), saídos
um ano depois de "Noturno", a
marca que perpassa é a da memória deslocada pelo exílio, "o calor
de uma certa desmedida", que é o
vagar sem rumo dessas escrituras
de proscritos.
Tendo vivido metade de sua vida na região de Barcelona (Roberto Bolaño morreu no ano passado, com 50 anos, e lá viveu desde
1978), é "visceral" mesmo sua
desconfiança com respeito à instituição literária, sobretudo no que
diz respeito à construção de mitologias e martirológios nacionais.
O vigor incisivo de sua prosa espiralada não redime nenhuma das
ilusões de uma nacionalidade
fundadora, seja antes, durante ou
pós-era Pinochet.
Em "Noturno", a narrativa investe contra o mundo dos artistas
(a personagem María Canales é
casada com um agente norte-americano da Dina, o temível órgão de repressão e tortura), críticos (na figura de Farewell, autoridade absoluta do mundo literário
chileno, cujo declínio já se insinua
no nome) e poetas (desconstruir
o mito Pablo Neruda é um dos esportes favoritos dos narradores
de Bolaño).
Também a Igreja Católica não
passa incólume, nessa presença
em muitos lances patética do padre Lacroix, membro da Opus
Dei: contratado por dois comerciantes obscuros (os senhores
Odem e Oidó, anagramas respectivos de medo e ódio, detalhe
muito bem apanhado pelo tradutor brasileiro, Eduardo Brandão),
ele oferece aulas introdutórias e
clandestinas de marxismo à junta
militar golpista, apoiado, entre
outros textos, no manual de materialismo histórico da chilena
Marta Harnecker, hit das esquerdas latino-americanas dos anos
60 e 70.
Mas "Noturno do Chile" não é
libelo, nem pote amargo. Se a paisagem é a da noite elegíaca de
uma barbárie que ultrapassou os
portais do absurdo, e a atmosfera
ronda sempre o pesadelo, sobra
entretanto humor, imaginação,
erudição literária e um lirismo
que se espraia em detalhes só
acessíveis a um escritor que começou a escrever, viveu e morreu
como poeta, no epicentro de terremotos que solaparam as utopias de sua geração. Cujos rostos
talvez se pareçam com o desse
"jovem envelhecido", "fantasma", ternamente admissível, contudo, se não pretendermos continuar o vôo cegos.
Francisco Foot Hardman é professor
de teoria e história literária na Unicamp
e autor de "Trem Fantasma: A Madeira-Mamoré e a Modernidade na Selva" (Cia.
das Letras)
Noturno do Chile
Autor: Roberto Bolaño
Tradutor: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27 (120 págs.)
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