São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2010

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DRAUZIO VARELLA

O sutiã cor de rosa


Achei um espaço na mala, mas era muito à vista. E se na alfândega resolvessem inspecionar a bagagem?


ESTAVA PARA fechar a mala quando minha mulher entrou. Trazia nas mãos um sutiã rosa-espantado decorado com bolinhas brancas:
-Você me compra um igual? É maravilhoso, não tem armação metálica nem um pingo de sintético, 100% algodão.
Deu o nome, o endereço da loja e insistiu que eu não deixasse de mostrar o sutiã à balconista, única maneira de evitar as confusões que os homens fazem ao comprar roupas femininas. Em tom de professora de maternal, repetiu as recomendações duas vezes: tinha que ser de outra cor, mas exatamente do mesmo modelo, conforme as especificações impressas na etiqueta.
Achei um espaço por cima das roupas já organizadas na mala, mas, antes de trancá-la, me passou pela cabeça que aquela peça íntima, rosa daquele jeito, ainda por cima repleta de bolinhas, ficava muito à vista. E se na alfândega resolvessem inspecionar a bagagem?
Levantei duas camisas e uma calça, coloquei o sutiã por baixo, fechei o zíper e tranquei o cadeado.
O arrependimento veio de imediato. Não seria pior escondê-lo? O fiscal não ficaria ainda mais invocado? Quem não deve não teme, pensaria ele.
Lembrei de uma tira dos "Piratas do Tietê", se não me engano, em que Laerte contava a história de um machão que, na falta de cuecas na gaveta, saiu de casa com a calcinha da mulher. Atropelado em seguida, o rapaz virou motivo de chacota da cidade inteira. A tira terminava numa sessão espírita encomendada pela esposa inconsolável, na qual aparecia o médium materializando uma fila de espíritos só de cueca e ele de calcinha rendada.
E se o avião caísse? Certamente, a bagagem com meu nome seria identificada. Imaginei as maledicências e os comentários dos cafajestes dos meus amigos. Eu seria tema central das rodinhas de desocupados e das mesas de botequim: "Sempre achei que ele tinha um jeitinho". "Por isso que viajava tanto." "Aqui machão, voz grossa, sentava de perna aberta. Lá fora, de calcinha e sutiã." Nem o gélido abraço da morte me livraria de tamanha humilhação. Uma vida inteira de luta manchada no minuto derradeiro.
Felizmente, passei incólume pela alfândega. No hotel, outra vez a dúvida cruel: deixo à mostra ou guardo no fundo da gaveta?
Decidi pela segunda opção e esqueci do problema até o último dia do congresso, ocasião em que decidi correr até a tal loja de roupas íntimas. Pensei em embrulhar o sutiã, mas não havia papel no quarto. Anotei todos os dados da etiqueta, joguei-o em cima da cama e desci rápido porque o comércio estava para fechar. Jamais sairia pela rua com aquela coisa rosa na mão; e se achassem que era fetiche?
Quando cheguei no saguão do hotel, lembrei do passaporte e voltei para buscá-lo. O quarto estava aberto. A camareira, uma senhora negra de andar desengonçado, havia entrado para ajeitar os lençóis. No meio da cama, resplandecia o rosa do sutiã contra o branco da colcha. Ela pediu licença para retirá-lo e colocou-o com delicadeza na poltrona ao lado.
Mil vezes melhor se eu tivesse apanhado o passaporte e saído sem abrir a boca, em vez de dizer: "É de minha mulher". Ela acrescentou sem olhar para mim:
-E de quem poderia ser?
Na loja, não havia um único homem. Encontrei os sutiãs numa prateleira do fundo e comprei logo três, só de raiva: um vermelho-encarnado, um listado preto e cinza e outro branco.
Saí com os três espremidos uns contra os outros numa sacola minúscula e fui atrás de um restaurante. Depois de jantar, a caminho da porta, um homem de barriga avantajada, sentado com dois casais, interrompeu minha passagem:
-Somos de Picos, no Piauí, nunca imaginamos conhecer o senhor justamente fora do Brasil.
Depositei a sacola sobre uma montanha de casacos empilhados em desordem sobre uma cadeira e cumprimentei um por um. Trocamos algumas palavras, desejei-lhes boa viagem, pedi licença e peguei a sacolinha meio desequilibrada sobre os agasalhos.
Nesta altura, leitor, você imaginará que os sutiãs se espalharam pelo chão.
Está enganado. De fato, puxei a sacola por apenas uma das alças, mas nem todos caíram, só o vermelho-encarnado.



AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Ferreira Gullar



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