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Antropofagia ao alcance de todos
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Ontem, na crônica da página
1-2 da Folha, sem fazer o elogio
da antropofagia (que já fora
feito pelos modernistas de 22),
salientei que a idéia não deve
ser de todo desprezada, máxime em tempos de recessão,
quando há ameaça de colapso
no mercado de proteínas e sais
minerais na alimentação do
brasileiro.
No texto de ontem, falei conceitualmente, sem descer a pormenores. Prometi que daria algumas receitas no melhor estilo
desses mestres de forno e fogão
que aparecem na TV e ocupam
o generoso espaço das seções especializadas de jornais e revistas.
Para início do serviço, devo
lembrar que obedecer fielmente
às receitas é apenas parte do sucesso, seja ou não da culinária
antropofágica. Importância
igual ou maior deve ser dada à
qualidade dos ingredientes, incluindo a boa procedência dos
mesmos. Feito isso, passemos ao
serviço propriamente dito:
"Escoteiro à la Reine" (ou "lobinho ao primo canto") - Pegue
um escoteiro bem lavado, desosse-o com cuidado para não
romper os músculos. Grelhe em
fogo lento e sirva com molho de
madeira. Prato sumamente eficaz para chefes de partidos políticos, presidentes de escola de
samba e analistas de sistema.
"Ensaísta a Saint-Beuve" -
Corte um ensaísta literário em
pequeninas fatias. Unte-as com
manteiga e leve ao forno brando com rodelas de cebola. Faça
um refogado com bastante pimenta, meta tudo numa caçarola. Deixe ferver por 45 minutos. Guarnição de beterrabas e
cenouras. Acompanha vinho
tinto. Recomenda-se cuidado
na escolha do ensaísta. Os melhores são aqueles que só publicaram dois ensaios. Ensaísta
que já escreveu 20 ensaios deve
ser intragável. O meio termo é o
mais indicado.
"Corcundinha com espinafres" - Apanhe um corcundinha
bem-humorado e sem complexos. Lave-o de dentro para fora
com limão, deixe-o suar bastante numa panela abafada
com alho e óleo. Use espinafres
à vontade. O prato é sumamente nutritivo, rico em vitaminas
A e B. Indicado para formadores de banda, formadores de
opinião e informadores meteorológicos.
"Coxinha de marqueteiro em
campanha" - Procure um marqueteiro bem-produzido em
roupas e vocabulário. Retire as
coxas com cuidado, aproveitando as tíbias e o fêmur. Faça
o recheio aproveitando pedaços
do fígado e dos rins. Leve à frigideira com banha bem quente.
O segredo do prato está na procura do espécime. Evite os relações-públicas e os picaretas. Para saber se é um bom marqueteiro, faça um teste preliminar.
Se ele for incapaz de provar que
o Montenegro do Ibope errou
mesmo, pode jogar fora.
"Ratinho à moda" - Apanhe o
Ratinho às 16h. Não o lave, a
fim de não tirar o gosto de Ratinho. Dê-lhe bastante cachaça
para que a carne amoleça. Mate-o com cuidado, antes que o
bispo Macedo apareça e atrapalhe o festim. Separe as vísceras para posterior farofa e coloque o resto em vinha d'alho
com bastante pimenta-do-reino
e cuminho. Assar em boa assadeira de barro, lentamente, virando os lados. Sirva-o inteiro,
com um ovo cozido na boca e
rodelinhas de limão espetadas
pelo corpo. Vinho sauterne.
Agora sim convide o bispo Macedo.
"Pernambucano ao tucupi" -
Limpe um pernambucano bem
gordo, assim como o Jô Soares, e
refogue-o com azeite-de-dendê
e pimentões vermelhos. Recheio
de castanha de caju. Junte o tucupi conforme o costume e deixe que o gosto do tucupi passe
para o pernambucano e vice-
versa. Acompanha batida de
maracujá. Prato especialmente
recomendado para rega-bofes e
paladares progressistas. Muito
apropriado para servir em
campanhas eleitorais de candidatos da coligação PFL-PSDB.
"Cômico de TV à mineira" -
Passe na máquina de moer
duas dúzias de cômicos de TV.
Faça um refogado com alhos e
bugalhos. Sirva com tutu e couve picadinha. Prato muito bom
aos domingos, quando há convidados da zona norte em casa.
Tome um alka-seltzer depois.
"Rocamboles de cobradores
de prestação" - Reduza os cobradores de prestação a uma
pasta informe e forme com ela
um rocambole. Jogue tudo no
lixo, porque o prato é intragável e só tem o mérito de nos livrar de novas cobranças.
Aí estão as sugestões. Evidente que, em culinária, como em
arte em geral e no sexo em particular, a imaginação e o entusiasmo darão a justa medida
na produção, preparo e apresentação das iguarias acima indicadas. Procure o auxílio de
sua mulher. Ela saberá aconselhar um tempero circunstancial, além de esclarecer sobre
um ou outro ponto obscuro.
Se há visitas imprevistas, convidados não-convidados que
soem aparecer quando caprichamos no preparo do bródio
caseiro, há sempre o recurso de
uma salada com meninos prodígios, servida fria com maionese, artistas performáticos em
espetinhos grelhados e o recurso
desesperado de aumentar o
"cozido de colunistas sem assunto", servido com molho de
alcaparra.
Todos os pratos recomendados são carminativos, de fácil
digestão e insignificante taxa
de colesterol. Lactentes, velhos e
senhoras grávidas podem abusar.
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