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CONTARDO CALLIGARIS
Um amigo na Alemanha
Na semana passada, capitularam as tropas do Taleban que defendiam Cunduz, no
norte do Afeganistão. A reportagem do "The New York Times"
(26/11) narrou que, ao penetrar
na cidade, os homens da Aliança
do Norte encontraram cadáveres
e feridos pelas ruas, à-toa.
Um desses soldados do Taleban,
Abdul Hadid, estava sentado na
calçada, baleado, tremendo de
choque, de febre e talvez de medo,
com as roupas encharcadas de
sangue e urina. Foi circundado
pelos vencedores e interrogado
aos gritos: "Cadê os outros? De
onde você é? (certamente para
identificar um eventual voluntário paquistanês, que seria tratado
pior) Cadê sua arma?".
No pequeno grupo hostil e vociferante que se adensava ao redor
dele, Abdul Hadid percebeu que
havia dois jornalistas ocidentais
as únicas caras, provavelmente,
que mostravam compaixão. Endereçou-se a eles, expressando seu
único (e último?) pedido de ajuda
da seguinte maneira: "Tenho um
amigo na Alemanha". Depois disso, foi levado embora -oficialmente, para um hospital.
É como se Abdul, na hora de
perder a vida por fidelidade tribal, dissesse aos que podiam entendê-lo, ou seja, aos ocidentais
presentes: não sou "todo" daqui,
minha tribo não resume inteiramente minha humanidade. Na
hora de morrer por causa de uma
diferença étnica, ele invocou um
mundo onde, em princípio, tribos
e crenças não seriam condições de
cidadania.
Não acredito que a frase de Abdul fosse uma artimanha oportunista. É mais provável que ela
manifestasse uma dolorosa contradição de fundo. Por um lado,
há a vontade de defender o que,
desde sempre, constitui uma espécie de essência: a devoção, os costumes, a fidelidade exclusiva à
tribo. Por outro lado, há a sedução da Alemanha, para onde já
foi o amigo. Qual é a força dessa
sedução? Será que está apenas na
abundância da bugiganga?
Vários comentadores levantam,
ultimamente, o espectro da retomada do conflito entre o Islã e a
cristandade. Mas o conflito de hoje não pode ser o mesmo que assolou os primeiros 600 anos do século 20. Pois a cristandade diluiu-se
na modernidade. Consequência
disso: o conflito de hoje não é entre duas culturas, cada uma exclusiva. Mas entre uma cultura
tradicional, que se sustenta na exclusão (dos infiéis, por exemplo),
e a modernidade, que idealiza a
inclusão de todos. A modernidade é um inimigo excepcionalmente sedutor. Ela facilita a traição
por admitir qualquer um como
sócio.
Abdul Hadid, dividido entre a
fidelidade a sua tribo e a sedução
de uma cultura outra, mas que
poderia incluí-lo, já é nosso semelhante. Sua contradição não é
muito diferente da nossa, cotidiana, entre a nostalgia de algum tipo de pátria e a ambição de reconhecer a humanidade como nossa única tribo.
O Taleban, que receia a contradição de Abdul e sua traição, oferece US$ 50 mil para cada cabeça
de jornalista "pró-ocidental" no
Afeganistão.
2. Os imigrantes estão numa posição privilegiada para detectar
atividades insólitas em suas comunidades. Sobretudo os imigrantes ilegais, que tendem a viver em comunidades étnicas fechadas. Portanto John Ashcroft, o
ministro da Justiça dos EUA,
anunciou o seguinte: os estrangeiros que fornecessem informações
sobre atividades terroristas receberiam estatuto de imigrantes legais e poderiam tornar-se cidadãos dos Estados Unidos num
prazo de três anos.
Ashcroft deve apostar que essa
recompensa tenha mais valor do
que dinheiro. Abdul, na hora da
verdade, talvez topasse. Pois, na
(astuta) proposta americana, ele
encontraria confirmação de seu
sonho: lá, naquele Ocidente, seria
recebido e reconhecido na base de
seus atos. Nada de etnia.
3. Quando ruíram as torres gêmeas, foi banal comentar que elas
eram símbolos da potência econômica -americana ou ocidental.
Alguns dizem que a idéia moderna de arranhar o céu surgiu
na Itália, na pequena cidade de
San Gimignano, perto de Siena,
onde, na Renascença, as famílias
mais poderosas e abastadas competiam entre si elevando torres
mais altas do que as dos vizinhos.
Em suma, a coisa teria começado
como uma competição em que
cada um queria sobrepujar o outro, mostrar e comparar seu tamanho.
Mas, uma vez erguida, uma torre não é só isso. Viver, trabalhar
ou simplesmente subir, de vez em
quando, nos andares mais altos
significa ampliar o horizonte. É
uma maneira de constatar, inevitavelmente, que o mundo continua além do bairro e da aldeia.
Quem sabe, de lá, Abdul enxergasse a sua Alemanha.
4. O Ocidente declarará vitória
quando tiver desarraigado Al-Qaeda e outros grupos ou governos que promovem o terror. Mas
será só a conclusão de uma batalha.
O único jeito de conseguir uma
vitória final consistiria em fazer
que o Ocidente fosse parecido
com a Alemanha sonhada por
Abdul: um mundo onde as diferenças convivessem em paridade
de direitos. E onde as disparidades econômicas não chegassem a
substituir as antigas diferenças de
tribo ou de casta.
Esse Ocidente seria mesmo irresistível.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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