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CARLOS HEITOR CONY
A crônica como gênero do jornalismo e da literatura
Alunos de curso de comunicação pedem-me uma definição do jornalismo literário e,
em complemento, o papel da crônica nesse tipo de jornalismo.
Embora não me considere a pessoa indicada para falar sobre o tema, tentarei dar uma resposta coletiva ao que me pedem, com as
naturais ressalvas sobre a autoridade (nenhuma) com que me meto nesta praia, que não é a minha.
Para definir o jornalismo literário, vamos começar pelo substantivo, que é jornalismo, deixando o
adjetivo para depois. O que é o
jornal? É um periódico, uma coisa
feita de período em período. Por
mais que pareça incrível, Franz
Kafka, que nunca foi realmente
um jornalista, tem a imagem
mais perfeita que conheço sobre o
assunto. Ele compara o jornal a
um trem que sai todo dia, num
determinado horário, vazio ou
cheio, e de determinada plataforma, para chegar a outra. Se estiver lotado, tudo bem. Se estiver
com lugares vazios, dará prejuízo,
porque cada lugar sem passageiro
não poderá ser reciclado, usado
uma segunda vez.
Em países subdesenvolvidos, espera-se o trem encher, como um
lotação, um pau-de-arara. Uma
ferrovia civilizada faz o trem
cumprir o horário, independentemente de estar cheio ou com lugares vazios.
O jornal é como um trem -dizia Kafka. Tem que sair em determinado dia, ou todos os dias, mas
com uma diferença básica em relação aos trens: ele não pode sair
vazio. Com assunto ou sem assunto, tem que ocupar todas as
suas páginas, seja com anúncios,
ilustrações ou textos paralelos,
desvinculados de sua função natural, que é a notícia, a informação, o serviço da comunicação
propriamente dito.
O veículo-jornal, ao contrário
do veículo-trem, não pode sair
com lugares não ocupados. E, para encher com alguma dignidade
o ângulo morto de cada edição,
apelou-se, entre outras coisas, para a crônica, que tem uma tradição paralela na história da comunicação humana.
Nos séculos 16 e 17, a crônica era
um gênero-bonde, um gênero-ônibus, onde tudo cabia com o
nome de crônica. Qualquer relato
levava o nome de crônica, que
tem embutido o conceito de tempo (cronos), cobrindo um período, sendo, portanto, um periódico.
Voltemos agora ao jornalismo
dito literário. A literatura é, em
essência, o oposto do período, do
tempo. Ela procura ser intemporal, sem vínculo com a data -nada mais frustrante do que a literatura datada.
Daí a conclusão de que a crônica, como gênero jornalístico ou
como gênero literário, é uma contrafação. Os mais radicais poderão considerá-la subjornalismo
ou subliteratura. Dirão alguns:
há crônicas admiráveis, e a citação de Machado de Assis é obrigatória. E cada um poderá citar
um autor ou uma determinada
crônica admirável. Mas, se Machado não tivesse escrito os romances finais de sua carreira, seria hoje um João do Rio melhorado, um Humberto de Campos
mais consistente.
Contudo não podemos ignorar
que foi nos jornais, aqui e em outros países, que, para ocupar lugares vazios, os editores procuravam autores de textos exclusivamente literários, sem compromisso com o período, com a data. Em
jornal, Manuel Antônio de Almeida publicou as "Memórias de
um Sargento de Milícias". Em jornal, saiu "O Guarani", de José de
Alencar. Grosso modo, o folhetim,
mesmo com sua carga pejorativa,
seria o padrão do jornalismo literário, o passageiro disponível que
ocuparia o lugar de uma notícia,
de uma informação, de um serviço.
Antes da existência dos jornais,
a comunicação era feita por arautos ou mesmo por camadas de fumaça, à maneira dos índios, ou
por sinais luminosos. Não corria o
risco de ser confundida com a literatura. Quando os sinais foram
codificados em palavras compostas por letras, a aproximação com
a literatura tornou-se inevitável.
Mas a notícia, base do jornal, é
como a anedota em que Guimarães Rosa a comparava ao fósforo
que se acende, brilha um instante
e se apaga. Torna-se inútil como
um fósforo queimado. Não funciona uma segunda vez.
Comprometido com a notícia,
com o fato do dia, o jornal abriu
espaços para a comercialização,
que o sustenta industrialmente, e
para os passageiros robotizados
que podem ocupar os lugares vazios de cada edição. Surgiram então as colunas, os "potins", os
"faits divers", as charges e, naturalmente, as crônicas, que são a
expressão mais visível do jornalismo dito literário. Daí que os cronistas, mesmo os bem-sucedidos,
são vistos como subprodutos, autores de circunstância que, mais
cedo ou mais tarde, ficarão datados.
Resumindo a ópera: pode-se
concluir que não há jornalismo literário. Há jornalismo e há literatura. Funcionam por meio de sinais ou símbolos, que são as palavras compostas por letras, mas
nem todas as letras formam necessariamente aquilo que se compreende como literatura.
Há jornalistas que dominam a
técnica e a composição do texto.
Mas são eles, exatamente, que se
tornam cada vez melhores à medida que deixam de ser literários.
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