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São Paulo, sábado, 06 de dezembro de 2003

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WALTER SALLES

Eastwood implode a noção de um "eixo do mal"

É como se não houvesse mortos norte-americanos na guerra do Iraque. Pelo menos, na TV. Não se vêem enterros, apenas as homenagens aos soldados que tombaram frente à resistência iraquiana.
A ficcionalização da realidade continua correndo solta. O roteiro previa uma invasão de uma precisão clínica, asséptica. Deu errado. Enquanto o conflito se vietnamiza, aumenta a pressão por parte do governo norte-americano para manter a versão oficial -a da guerra de libertação.
"Isso não é pragmatismo, não é realpolitik, não é conservadorismo, não é nem mais liberalismo", escreveu recentemente a revista "New Yorker". "É pura teologia."
Esses corpos censurados na tela da TV podem, paradoxalmente, ser encontrados numa safra recente do cinema norte-americano. Não são corpos de soldados cujas vidas foram ceifadas no Iraque. São mortos mais próximos. Refletem uma guerra interna, surda, que avança nos Estados Unidos. Estão presentes em filmes como "Elefante", de Gus van Sant, e "Sobre Meninos e Lobos", de Clint Eastwood.
"Elefante" é uma releitura do massacre de Columbine, tema do último documentário de Michael Moore. O filme de Van Sant ganhou a Palma de Ouro em Cannes. "Sobre Meninos e Lobos", apresentado no mesmo festival, não foi premiado. Mas o filme, que estreou ontem no Brasil, talvez seja o mais importante dos dois, tanto do ponto de vista político quanto do cinematográfico.
A história, adaptada do livro homônimo do escritor Dennis Lehane, começa na época de outra guerra -o início dos anos 70, em que os Estados Unidos afundavam no Vietnã. A narrativa se desenvolve em uma comunidade católica de Boston, em um meio de classe média baixa. Três meninos de dez anos brincam numa rua semideserta. Um carro pára. Homens que aparentam ser policiais levam um desses meninos à força.
Corta. Trinta anos mais tarde, os destinos desses três meninos vão novamente se entrelaçar. Dave (Tim Robbins), o homem que sobreviveu ao ato de violência inicial, ainda carrega as cicatrizes do passado. É casado com a irmã de seu amigo de infância Jimmy (Sean Penn). O terceiro companheiro da cena de abertura, Sean (Kevin Bacon), virou policial e se distanciou do grupo.
Um crime vai reaproximá-los: a filha de Jimmy desaparece. Sean é chamado a conduzir o inquérito policial, e todos os indícios apontam Dave como o culpado.
A trama policial vai enredando os personagens em sua lógica inexorável, mas "Sobre Meninos e Lobos" não é um filme que cabe na definição do filme de gênero. É muito mais do que isso, um daqueles raros filmes que utilizam códigos conhecidos para melhor transgredi-los.
Estamos no campo da meditação moral, para não dizer metafísica. Com mão de mestre, Eastwood se distancia do thriller para gravitar na direção da tragédia grega. O que lhe interessa não é saber quem cometeu um crime, e sim entender como esse ato de violência se relaciona com o meio que o gerou.
Cinema de um grande refinamento, mas não só. O mais importante ainda está por vir. O que "Sobre Meninos e Lobos" faz melhor do que qualquer filme norte-americano recente é mostrar o quanto a violência é constitutiva daquilo que os sociólogos chamariam de "tecido social" daquele país. Enquanto Bush fala da existência de um "eixo do mal" em contraposição ao "bem", Eastwood mostra que o bem e o mal estão inexoravelmente entrelaçados, tão entrelaçados quanto os personagens que se debatem no mesmo quadro. Pior: dentro do próprio território americano.
A direção, de extremo rigor, só é clássica na aparência. O uso magistral do cinemascope permite a Eastwood acompanhar sempre dois ou três personagens de perto, sem passar pelo corte. É o contrário da gramática televisiva, que quase sempre privilegia uma pessoa por plano. Eastwood devolve ao scope a qualidade que tanto interessou ao pessoal da nouvelle vague, como Truffaut em "Jules e Jim": a de mostrar a interdependência de todas as coisas.
Com uma construção tão precisa, permitindo que os personagens evoluam sem o recurso constante do campo-contracampo, não é de estranhar que atores tão talentosos quanto Sean Penn e Kevin Bacon estejam soberbos. Eastwood ainda potencializa essas atuações com um fino entendimento das possibilidades narrativas da luz e do som. Como se não bastasse, ele ainda compôs a trilha do filme, de uma grande elegância.
"Sobre Meninos e Lobos" termina com um daqueles desfiles patrióticos tão caros aos Estados Unidos. Todos os personagens do filme estarão presentes. Mas tudo mudou. A inocência não é mais possível. Sobram apenas o falso puritanismo e a culpa. O inferno não são os outros, aqueles que vivem além-fronteira. Que isso seja dito por um cineasta que é abertamente do partido republicano é mais um dos mistérios desse filme fascinante.


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