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WALTER SALLES
Eastwood implode a noção de um "eixo do mal"
É como se não houvesse mortos norte-americanos na
guerra do Iraque. Pelo menos, na
TV. Não se vêem enterros, apenas
as homenagens aos soldados que
tombaram frente à resistência
iraquiana.
A ficcionalização da realidade
continua correndo solta. O roteiro
previa uma invasão de uma precisão clínica, asséptica. Deu errado. Enquanto o conflito se vietnamiza, aumenta a pressão por parte do governo norte-americano
para manter a versão oficial -a
da guerra de libertação.
"Isso não é pragmatismo, não é
realpolitik, não é conservadorismo, não é nem mais liberalismo",
escreveu recentemente a revista
"New Yorker". "É pura teologia."
Esses corpos censurados na tela
da TV podem, paradoxalmente,
ser encontrados numa safra recente do cinema norte-americano. Não são corpos de soldados
cujas vidas foram ceifadas no Iraque. São mortos mais próximos.
Refletem uma guerra interna,
surda, que avança nos Estados
Unidos. Estão presentes em filmes
como "Elefante", de Gus van
Sant, e "Sobre Meninos e Lobos",
de Clint Eastwood.
"Elefante" é uma releitura do
massacre de Columbine, tema do
último documentário de Michael
Moore. O filme de Van Sant ganhou a Palma de Ouro em Cannes. "Sobre Meninos e Lobos",
apresentado no mesmo festival,
não foi premiado. Mas o filme,
que estreou ontem no Brasil, talvez seja o mais importante dos
dois, tanto do ponto de vista político quanto do cinematográfico.
A história, adaptada do livro
homônimo do escritor Dennis Lehane, começa na época de outra
guerra -o início dos anos 70, em
que os Estados Unidos afundavam no Vietnã. A narrativa se desenvolve em uma comunidade
católica de Boston, em um meio
de classe média baixa. Três meninos de dez anos brincam numa
rua semideserta. Um carro pára.
Homens que aparentam ser policiais levam um desses meninos à
força.
Corta. Trinta anos mais tarde,
os destinos desses três meninos
vão novamente se entrelaçar. Dave (Tim Robbins), o homem que
sobreviveu ao ato de violência
inicial, ainda carrega as cicatrizes
do passado. É casado com a irmã
de seu amigo de infância Jimmy
(Sean Penn). O terceiro companheiro da cena de abertura, Sean
(Kevin Bacon), virou policial e se
distanciou do grupo.
Um crime vai reaproximá-los: a
filha de Jimmy desaparece. Sean é
chamado a conduzir o inquérito
policial, e todos os indícios apontam Dave como o culpado.
A trama policial vai enredando
os personagens em sua lógica inexorável, mas "Sobre Meninos e
Lobos" não é um filme que cabe
na definição do filme de gênero. É
muito mais do que isso, um daqueles raros filmes que utilizam
códigos conhecidos para melhor
transgredi-los.
Estamos no campo da meditação moral, para não dizer metafísica. Com mão de mestre, Eastwood se distancia do thriller para
gravitar na direção da tragédia
grega. O que lhe interessa não é
saber quem cometeu um crime, e
sim entender como esse ato de
violência se relaciona com o meio
que o gerou.
Cinema de um grande refinamento, mas não só. O mais importante ainda está por vir. O que
"Sobre Meninos e Lobos" faz melhor do que qualquer filme norte-americano recente é mostrar o
quanto a violência é constitutiva
daquilo que os sociólogos chamariam de "tecido social" daquele
país. Enquanto Bush fala da existência de um "eixo do mal" em
contraposição ao "bem", Eastwood mostra que o bem e o mal
estão inexoravelmente entrelaçados, tão entrelaçados quanto os
personagens que se debatem no
mesmo quadro. Pior: dentro do
próprio território americano.
A direção, de extremo rigor, só é
clássica na aparência. O uso magistral do cinemascope permite a
Eastwood acompanhar sempre
dois ou três personagens de perto,
sem passar pelo corte. É o contrário da gramática televisiva, que
quase sempre privilegia uma pessoa por plano. Eastwood devolve
ao scope a qualidade que tanto
interessou ao pessoal da nouvelle
vague, como Truffaut em "Jules e
Jim": a de mostrar a interdependência de todas as coisas.
Com uma construção tão precisa, permitindo que os personagens evoluam sem o recurso constante do campo-contracampo,
não é de estranhar que atores tão
talentosos quanto Sean Penn e
Kevin Bacon estejam soberbos.
Eastwood ainda potencializa essas atuações com um fino entendimento das possibilidades narrativas da luz e do som. Como se
não bastasse, ele ainda compôs a
trilha do filme, de uma grande
elegância.
"Sobre Meninos e Lobos" termina com um daqueles desfiles patrióticos tão caros aos Estados
Unidos. Todos os personagens do
filme estarão presentes. Mas tudo
mudou. A inocência não é mais
possível. Sobram apenas o falso
puritanismo e a culpa. O inferno
não são os outros, aqueles que vivem além-fronteira. Que isso seja
dito por um cineasta que é abertamente do partido republicano é
mais um dos mistérios desse filme
fascinante.
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