|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
"A Vida dos Outros"
O mistério é a banalidade
do bem: por que alguns
encontram a vontade
de resistir ao horror?
É UMA HISTÓRIA que já contei,
mas não tenho como evitar
esta breve repetição. Anos
atrás, defendi uma tese de doutorado sobre a questão seguinte: como é
possível que homens quaisquer,
sem nenhuma predisposição moral
ou patológica, homens como você e
eu, possam se tornar algozes?
O exemplo central da tese eram
os inúmeros sujeitos que, durante
o nazismo, atuaram, direta ou
indiretamente, como agentes de
extermínio.
Excluí a minoria que era motivada
por uma certeza ideológica e os pouquíssimos sádicos, que, aliás, eram
descartados pelo próprio processo
seletivo dos SS. Também confirmei
que, no caso da "tarefa" genocida,
as punições para quem não obedecesse às ordens eram mínimas,
se não nulas.
Sobraram-me, então, batalhões de
reservistas, pais de família, "brava
gente", provavelmente animados
pela mesma moral básica que todos
compartilhamos. Como explicar sua
complacência e seus atos?
Cheguei a esta resposta inquietante: qualquer um (ou quase) pode
se esquecer de sua humanidade não
por convicção nem por crueldade ou
por medo, mas, simplesmente, pelo
descanso que ele encontra na obediência, no sentimento de fazer parte de uma máquina da qual ele pode
ser uma pequena engrenagem. Desejar, pensar e agir como indivíduo é
penoso; muito mais fácil é renunciar
à subjetividade (sempre atormentada) para transformar-se em burocrata do mal.
Meus argumentos convenceram
os que os leram. Mas fiquei com uma
pergunta: tinha jogado um pouco de
luz sobre a "banalidade do mal" (como dizia Hannah Arendt), mas o que
continuava misterioso era a banalidade do bem. Entendia como milhares de homens comuns puderam se
tornar algozes; não sabia por que
alguns, nas mesmas condições,
tinham encontrado a vontade
de resistir.
Não penso nos que, animados por
seus ideais, levantaram as armas ou
a voz contra os totalitarismos do século 20. Gostaria de entender os pequenos gestos de resistência que
surgiram do nada, sem uma motivação que fosse clara para o próprio
agente. Gostaria de entender o fascista simpatizante que, um dia, no
meio de uma batida policial, escondeu um judeu, um homossexual ou
um resistente. Ou o burocrata que,
de repente, apagou o nome de uma
família de uma lista de deportação
ou avisou alguém que ia ser preso,
para que fugisse a tempo.
No nosso cotidiano imediato, na
esquina de casa, por que, às vezes, se
abrem frestas de humanidade e resistência na parede uniforme da
complacência?
Estreou, na semana passada, "A
Vida dos Outros", o filme alemão, de
F. H. von Donnersmarck, que foi
Oscar de melhor filme estrangeiro
em 2007.
Os fatos narrados acontecem
durante os últimos anos da Alemanha Oriental, um regime talvez inigualado em seu caráter totalitário
e policial.
Claro, é uma história de homens
transformados em burocratas sinistros pela vontade de impor seu capricho aos outros e, sobretudo, pelo
vazio de sua vida.
Mas é também a história do ato de
coragem repentino (pequeno ou
grande, depende do ponto de vista)
de Gerd Wiesler, um oficial da Stasi,
a polícia do regime.
Saí do cinema me perguntando o
que, no filme, tinha motivado a insubordinação de Wiesler. Foi a descoberta das razões sórdidas de seus superiores? Foi a simpatia por suas vítimas ou, quem sabe, o amor por
uma delas? Foi a leitura de um poema de Brecht? Ou a escuta de uma
sonata? Ou talvez a comparação entre a miséria silenciosa de sua existência e o ruído de amores, conversas e idéias na vida dos que eram objetos de sua escuta contínua?
Numa cena tocante do filme,
Wiesler chega em casa (uma espécie
de protótipo do anonimato), cobre
seu espaguete com extrato de tomate frio e senta diante do televisor que
transmite crônicas políticas do regime. Há, na vida de Wiesler, uma irrelevância e um deserto afetivos que
são o próprio estigma da complacência burocrática, mas que talvez
sejam, ao mesmo tempo, a causa de
uma vontade inesperada de fazer, por
uma vez, a diferença, de se permitir
um ato que valha a pena ser lembrado e contado.
Raramente assisti a um filme que,
de maneira discreta e humilde, me
ajudasse tanto a entender o que, de
repente, no marasmo, pode nos devolver nossa humanidade e nos levar a fazer a coisa certa.
PS: O livro de José Saramago
mencionado na coluna passada, "O
Conto da Ilha Desconhecida", foi
publicado em 1998 e reimpresso recentemente.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Artes plásticas: Tate Modern, de Londres, será ampliada Índice
|