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NINA HORTA
Um café com Virginia Woolf
Em matéria de comida, Proust é riquíssimo, entendido -era cool
o tal do Proust
TENHO UM grupo de leitura há
quase 30 anos. Começamos
com Proust. O professor era
um anjo louro, lindo, olhos azuis,
sua primeira língua era inglês, mas
falava francês muito bem. Éramos
uma pequena Babel que, bilingüe, se
resolvia. Pois ele se casou com uma
bela morena quatrocentona, e, um
dia, justamente quando íamos entrar em Albertine Disparue, quem
desapareceu foi ele. De vez. Entrou
FBI, a família enlouquecida, nós
preocupadas, tivemos que ir dar depoimento na polícia etc.
Anos depois, apareceu em Cingapura, casado com uma chinesa. Com
ele lemos Eliot também. Em matéria de comida, Proust é riquíssimo,
entendido (não vou mencionar a
madeleine), era cool o tal do Proust.
Em grupo de leitura não dá para
ler um romance fácil, o barato é ficar
destrinchando. Por causa disso, entramos em Emily Dickinson, no começo de assustar, mulher das gavetinhas e papeizinhos amarrados onde escrevia seus poemas pontilhados. Mas era a padeira da casa,
sabiam? Fez pão um dia, o pai gostou e até a morte dele ela fazia os
pães da casa.
Depois Shakespeare, "Hamlet",
especificamente, e sabem quanto
tempo demora a leitura de uma peça
destas? Dois anos! Dois anos de
"Hamlet". É, pode parecer duro,
mas não é. Sempre tem alguma comidinha, mas confesso que em
"Hamlet" não me lembro, só quando
lhe perguntam onde está Polonius.
Agora já estamos há dois anos em
Virginia Woolf, magrela, com um relacionamento difícil com as empregadas. Mandava embora, passava
um dia felicíssimo, fazia uma comidinha gostosa para Leonard, tomavam um vinho espanhol, e daí vinha
a enxaqueca mortal, a empregada tinha que voltar correndo, ficando tudo como dantes no quartel de
Abrantes. Estamos lendo "Rumo ao
Farol", que tem o célebre jantar de
"boeuf a la mode", carregado de subentendidos, uma perfeição de escritura para ninguém botar defeito.
Mas não são só os protagonistas
dos livros que comem. Exatamente
às 11h30 temos três minutos para
um cafezinho, porque o professor
emagreceu e não quer saber de comilança, fica prá lá de irritado. Alguém nos surpreende com biscoitinhos enrolados em folhas de bananeira, mas quase temos que engolir a
folha, tão severo é o mestre com os
horários. Temos uma hostess perfeita, as empregadas ficam chilreando na cozinha e saem de lá com um
bolinho de papoula morno (ela é
meio húngara), sem doce, delicioso,
dá tempo de repetir se comermos
bem depressa.
Eu deveria ser a mais prendada e
oferecer o que há de bom, vindo do
bufê, mas a reunião é segunda de
manhã e não dá tempo de fazer nada. Andreinha se comove e faz alguma coisa e manda. Dessa última vez
(espero que não tenham percebido),
para agradar a damas tão elegantes,
como diz, cortou uns sanduichinhos
de pão de miga no formato de papais-noéis e minicorações ou sinos,
não eram muito definidos, nem deu
tempo de descobrir os formatos antes de socar escondidos na cozinha.
E uns biscoitinhos, ela que os faz tão
bem, amanteigados, resolveu pedir
uma receita nova a uma concorrente que, muito esperta, ensinou-a a
fazer uma bolinha negra de quebrar
os dentes. Vergonha. Às vezes tenho
a sorte de achar lima-da-pérsia.
Daí é muita gostosura tomar um
copo cheio bem geladinho, mesmo
que o biscoito seja em forma de
dromedário.
Na próxima segunda, acabaremos
de ler (não de discutir) "Rumo ao
Farol", e estou louca para fazer um
"boeuf en daube" e surpreender as
meninas. Não chegarei aos pés da
empregada de Mrs. Ramsay, mas,
afinal, o que querem de mim, que cozinhe ou que destrinche aqueles parágrafos densos? Gostaria do palpite
dos leitores para a próxima leitura,
prometo a receita do bolo de papoula que acabou de chegar por e-mail.
ninahorta@uol.com.br
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