São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2007

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NINA HORTA

Um café com Virginia Woolf

Em matéria de comida, Proust é riquíssimo, entendido -era cool o tal do Proust

TENHO UM grupo de leitura há quase 30 anos. Começamos com Proust. O professor era um anjo louro, lindo, olhos azuis, sua primeira língua era inglês, mas falava francês muito bem. Éramos uma pequena Babel que, bilingüe, se resolvia. Pois ele se casou com uma bela morena quatrocentona, e, um dia, justamente quando íamos entrar em Albertine Disparue, quem desapareceu foi ele. De vez. Entrou FBI, a família enlouquecida, nós preocupadas, tivemos que ir dar depoimento na polícia etc.
Anos depois, apareceu em Cingapura, casado com uma chinesa. Com ele lemos Eliot também. Em matéria de comida, Proust é riquíssimo, entendido (não vou mencionar a madeleine), era cool o tal do Proust.
Em grupo de leitura não dá para ler um romance fácil, o barato é ficar destrinchando. Por causa disso, entramos em Emily Dickinson, no começo de assustar, mulher das gavetinhas e papeizinhos amarrados onde escrevia seus poemas pontilhados. Mas era a padeira da casa, sabiam? Fez pão um dia, o pai gostou e até a morte dele ela fazia os pães da casa.
Depois Shakespeare, "Hamlet", especificamente, e sabem quanto tempo demora a leitura de uma peça destas? Dois anos! Dois anos de "Hamlet". É, pode parecer duro, mas não é. Sempre tem alguma comidinha, mas confesso que em "Hamlet" não me lembro, só quando lhe perguntam onde está Polonius. Agora já estamos há dois anos em Virginia Woolf, magrela, com um relacionamento difícil com as empregadas. Mandava embora, passava um dia felicíssimo, fazia uma comidinha gostosa para Leonard, tomavam um vinho espanhol, e daí vinha a enxaqueca mortal, a empregada tinha que voltar correndo, ficando tudo como dantes no quartel de Abrantes. Estamos lendo "Rumo ao Farol", que tem o célebre jantar de "boeuf a la mode", carregado de subentendidos, uma perfeição de escritura para ninguém botar defeito.
Mas não são só os protagonistas dos livros que comem. Exatamente às 11h30 temos três minutos para um cafezinho, porque o professor emagreceu e não quer saber de comilança, fica prá lá de irritado. Alguém nos surpreende com biscoitinhos enrolados em folhas de bananeira, mas quase temos que engolir a folha, tão severo é o mestre com os horários. Temos uma hostess perfeita, as empregadas ficam chilreando na cozinha e saem de lá com um bolinho de papoula morno (ela é meio húngara), sem doce, delicioso, dá tempo de repetir se comermos bem depressa.
Eu deveria ser a mais prendada e oferecer o que há de bom, vindo do bufê, mas a reunião é segunda de manhã e não dá tempo de fazer nada. Andreinha se comove e faz alguma coisa e manda. Dessa última vez (espero que não tenham percebido), para agradar a damas tão elegantes, como diz, cortou uns sanduichinhos de pão de miga no formato de papais-noéis e minicorações ou sinos, não eram muito definidos, nem deu tempo de descobrir os formatos antes de socar escondidos na cozinha. E uns biscoitinhos, ela que os faz tão bem, amanteigados, resolveu pedir uma receita nova a uma concorrente que, muito esperta, ensinou-a a fazer uma bolinha negra de quebrar os dentes. Vergonha. Às vezes tenho a sorte de achar lima-da-pérsia. Daí é muita gostosura tomar um copo cheio bem geladinho, mesmo que o biscoito seja em forma de dromedário.
Na próxima segunda, acabaremos de ler (não de discutir) "Rumo ao Farol", e estou louca para fazer um "boeuf en daube" e surpreender as meninas. Não chegarei aos pés da empregada de Mrs. Ramsay, mas, afinal, o que querem de mim, que cozinhe ou que destrinche aqueles parágrafos densos? Gostaria do palpite dos leitores para a próxima leitura, prometo a receita do bolo de papoula que acabou de chegar por e-mail.


ninahorta@uol.com.br

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