São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/DVD/"Decálogo"

Série sobre os 10 mandamentos é a obra-prima de Kieslowski

Caixa reúne produção que diretor fez para TV polonesa no final dos anos 80

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"A inda Vivo", filme biográfico sobre Krzysztof Kieslowski que vem como um dos extras de "Decálogo", lembra que a série foi concebida num momento particular, em que o comunismo agonizava, e os colegas do cineasta achavam necessário tocar em questões urgentes, como os sindicatos, as insatisfações etc.
Foi uma estranha e fértil intuição que, aparentemente, levou Kieslowski a refugiar-se "no básico": os dez mandamentos. Era um momento de desespero, também, e é um outro cineasta, Zanussi salvo engano, que lembra o ritmo febril em que Kieslowski trabalhava. Poderia levar anos o projeto de dez filmes, cada um dedicado a um mandamento. Mas tinha necessidade de fazer tudo rápido, como se quisesse não ver o mundo exterior à sua volta.
Ora, hoje, os filmes de "Decálogo" soam como um amplo documento da queda do comunismo na Polônia e em toda a Europa oriental. Foi justamente ao abstrair as lutas políticas que Kieslowski conseguiu resumir sua trajetória, dos anos de estudante de cinema ao trabalho como documentarista. Passemos pela avaliação, apressada, dos dez filmes. Como no passado, destacam-se claramente os que se transformaram em longas e acabaram por consagrar o cineasta internacionalmente, como "Não Matarás" e "Não Amarás" -no filme, "Não Cometerás Adultério" (a versão desta caixa é a dos filmes para a TV, com pouco menos de uma hora cada um).
O primeiro, "Amarás a Deus sobre Todas as Coisas", em que a tensão entre acreditar em Deus ou na ciência se apresenta com vigor, também é muito forte. Em alguns momentos, faz pensar que, de fato, se tivesse mais tempo de filmagem, alguns episódios poderiam ter rendido mais. A contrapartida é: teria perdido o momento -e isso seria irreparável.
Os episódios têm um cenário quase fixo: um conjunto habitacional que, na monotonia, representa o limite do sonho comunista. Da igualdade como ideal, chega-se facilmente ao igualitarismo como ideologia: os conjuntos habitacionais, em sua repetição insistente, traçam o limite da vida. Ali há calma, padronização, contenção. Uma espécie de "desenergia" em que as diferenças são anuladas. Ou não. Porque os filmes vão justamente ao particular.
Sem símbolos, são inspirados pelo espírito documental de Kieslowski, que chega aqui, nessa Polônia insatisfeita -que não parece fazer parte nem da Europa ocidental nem do bloco comunista-, aos títulos mais decisivos da carreira como ficcionista (numa série de filmes em que pouca gente levava fé).
É aqui que se manifesta um encontro quase perfeito entre uma circunstância (a agonia do comunismo), uma convicção (a crença no cinema como registro capaz de captar uma realidade fugaz, que vem dos primeiros trabalhos) e a fé cristã. Esta, oculta por circunstâncias políticas várias (do nazismo ao comunismo), está longe de ser suficientemente explorada. Em dado momento, quando "Ainda Vivo" trata da passagem de Kieslowski pela escola de cinema de Lodz, refere-se ao ano de 1968, em que, diz ele, a escola acaba porque os professores judeus são expulsos. Eis uma coisa sobre o que a Polônia ainda deve explicações: o arraigado, triste, indecoroso antissemitismo, que atravessa séculos e regimes políticos.
A edição de "Decálogo", à parte provar ser a obra-prima de Kieslowski, traz extratos de uma entrevista coletiva do autor e o curta " O Escritório" (1966): é um começo, mas uma amostra ainda insuficiente da produção do "jovem Kieslowski", de que se encontram bons fragmentos em "Ainda Vivo".


DECÁLOGO Distribuidora: Versátil
Quanto: de R$ 44,90 (cada disco) a 149,90 (caixa com quatro discos)
Classificação: 16 anos
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Novo livro faz diálogo entre mulher e barata
Próximo Texto: Saiba mais: Diretor polonês começou com documentários
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.