São Paulo, segunda-feira, 07 de janeiro de 2002

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ANÁLISE

Século principia trabalhoso

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O que chama a atenção no balanço de 2001 do cinema brasileiro não é tanto o que nos surpreende (como o alto número de filmes lançados), mas aquilo que nada tem de espantoso.
Exemplo mais dramático: o fato de mesmo filmes com mais de 1 milhão de espectadores se mostrarem deficitários.
A primeira reação é dizer: bem, nesse caso, abaixe-se o custo médio do filmes. A resposta é mais perigosa do que parece. Restringir custos significa, quase sempre, restringir também o número de espectadores. Ou seja, o déficit continuaria intacto.
Pode-se brandir o caso do Irã, com seus filmes de US$ 100 mil. Seria esquecer que o cinema iraniano não sofre a concorrência de Hollywood, por exemplo, embora por razões outras que não cinematográficas.
Que fazer, então? Acabar com o filme nacional? Foi o que Collor tentou. Imediatamente sentimos que essas imagens por vezes precárias nos faziam falta. Nem que seja para falar mal, são necessárias. No mais, quando elas desapareceram, percebemos que, bem ou mal, constituíam um patrimônio e um documento capital do século 20 brasileiro (malgrado todas as perdas, deteriorações etc.).
Saberíamos bem menos sobre o cangaço, sem as filmagens do "cavador" Benjamin Abraão, ou sobre nossa vida política, não fossem as reportagens do DIP ou de Primo Carbonari, entre outros. De forma misteriosa, o tempo enriquece as imagens de cinema, o que não acontece com as da televisão.
No mais, acabar com o cinema nacional não resolveria o problema econômico. Quanto mais filmes estrangeiros vemos, mais divisas remetemos ao exterior. Quem paga por isso? O mesmo contribuinte que paga, afinal, pelo filme brasileiro.
Que fazer? Aceitamos que a existência de filmes brasileiros é necessária até a sobrevivência dessa ficção que se denomina nação? Digamos que sim.
Mas em que termos? A Embrafilme mostrou que a distribuição de verbas não é uma coisa simples. Sob um regime militar, elegia-se, simplesmente, quem podia ou não filmar.
Para sair desse impasse, criaram-se as leis de renúncia fiscal. A decisão seria de investidores ou, em última análise, da própria sociedade.
O sistema mostrou-se improdutivo: diretores de marketing nem sempre sabem ler roteiros; não se criaram de início mecanismos eficazes de controle nem limites plausíveis de financiamento.
O caso "Chatô" é emblemático: um enorme orçamento, um produtor novato, um filme inacabado. E, para concluir, o reconhecimento pelo TCU de que não havia fraude nas contas de Guilherme Fontes. Portanto o erro não estava aí.
Pensar um novo sistema, criar uma verdadeira política cinematográfica, esse o desafio da Ancine para 2002. Isso significa, grosso modo, de início: criar mecanismos de financiamento transparentes e democráticos (driblando corporativismo e caciquismos); distribuição eficaz (isto é, competitiva) dos filmes; crescimento do parque exibidor (hoje exíguo, concentrado em grandes cidades e excludente).
Resolvido isso, aí começam de fato os problemas: a) evitar a armadilha da "indústria do audiovisual", quando toda nossa tradição (a que deu certo, em todo caso) é baseada no artesanato e na produção autoral; b) proteger a produção brasileira da concorrência de Hollywood, sabendo que nessa matéria os EUA não estão para brincadeira; c) criar um sistema de colaboração sem submissão com a TV (que no Brasil é a indústria cultural), o que significa encarar um poder político descomunal.
Enfim, o início de século se anuncia trabalhoso para o filme brasileiro. Até porque, se tudo isso der certo, estarão afastados alguns mitos e fantasmas quase seculares e criadas condições para encarar os problemas reais, que não são poucos nem pequenos.


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