São Paulo, sexta-feira, 07 de janeiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Os começos da decadência

Passei os últimos dias do ano atracado a um grosso volume de ensaios sobre a decadência, analisada por vários autores, alguns clássicos, outros modernos. Não apenas a decadência individual, que nos atinge a todos mais cedo ou mais tarde, conforme as circunstâncias, mas a decadência de empresas, movimentos culturais, sistemas de pensamento e impérios.
O exemplo mais espalhafatoso desse tipo de decadência foi a do Império Romano, império que atravessou séculos e cuja queda continua sendo pesquisada, sobretudo agora, a pretexto de uma comparação com a atual hegemonia norte-americana, que, de certa forma, pode ser considerada uma expressão imperialista.
Houve decadências menores e uma delas, por ser recente, merece meditação. Em tempo: o esboroar da União Soviética não faz parte do livro por ser próximo demais, pedindo perspectiva para ser julgado. E, a falar a verdade, talvez permaneça em processo, se levarmos em conta o arsenal tecnológico que ainda possui, apesar de fragmentado nas repúblicas que formavam, até pouco tempo atrás, a poderosa união socialista.
Fiquemos com o exemplo de Roma e da Inglaterra, admitindo que o Império Britânico tenha acabado, historicamente, no final da Segunda Guerra Mundial. O declínio de Roma, cuja força e amplidão duraram mais, teve vários motivos e diferentes causas. O próprio Gibbon, que é obrigatoriamente citado quando se toca no assunto, arrolou, entre os motivos e causas da decadência, desde o surgimento das hordas bárbaras além do Danúbio e do Reno até a mania dos romanos de tomar banho na termas que proliferavam na então "caput mundi".
Com exceção das campanhas militares que expandiam o império e o mantinham, os negócios públicos eram entregues a subordinados, ao que hoje chamamos de segundo escalão. Os principais líderes, os pais da pátria e seus protegidos passavam o dia mergulhados nos frigidários e tepidários, onde comiam, jogavam, recitavam poemas e, em alguns casos, se entregavam a práticas homossexuais. Tinha de dar no que deu: os bárbaros chegaram às portas de Roma, e um deles a saqueou.
No caso da Inglaterra, o furo foi mais embaixo, se confrontarmos o tamanho e a duração do Império Britânico com a grandeza e a duração do Império Romano. Em termos esquemáticos, mais ou menos aceitos pelos historiadores, a supremacia inglesa prevaleceu desde a queda de Napoleão, em 1915, até o final da última guerra mundial, em 1945, quando as colônias foram gradualmente libertadas e reloteadas as zonas de influência entre as duas principais potências que saíram vitoriosas no conflito: os Estados Unidos e a União Soviética.
Como acontece com os indivíduos, houve sinais quase imperceptíveis da decadência que fez esboroar o império que teve na era vitoriana seu período de maior esplendor. Um desses sinais foi detectado, curiosamente, nada mais, nada menos, por Benito Mussolini, um desvairado que tentava reviver o Império de Roma, substituindo as águias de suas falanges pelas camisas negras das esquadras fascistas.
O cenário foi o seguinte: Hitler havia anexado a Áustria e tentava anexar a Tcheco-Eslováquia, onde havia uma minoria de sudetos. Na realidade, o mundo percebeu que Hitler preparava uma nova guerra mundial para vingar o Tratado de Versalhes e impor a supremacia da raça ariana. Por intermédio dos líderes das principais nações da época, Chamberlain, da Inglaterra, Daladier, da França, monitorados à distância por Roosevelt, procuravam deter Hitler em nível diplomático.
Chamberlain, chefe do governo inglês, teve diversas entrevistas pessoais com o ditador nazista e nada conseguiu. Hitler deu um ultimato e estava pronto a invadir a Tcheco-Eslováquia quando Mussolini entrou na jogada, sugerindo uma reunião em Munique entre os interessados. Todos aceitaram a idéia. Aparentemente, a paz estava salva. O primeiro-ministro inglês, com seu guarda-chuva folclórico, num de seus retornos a Londres, seria recebido como o Anjo da Paz.
Teve de voltar a Hitler, que continuava com a idéia fixa de anexar os sudetos que viviam fora das fronteiras da Alemanha, mas, na realidade, preparando uma guerra em que pudesse anexar o resto da Europa. Foi então que Mussolini, pouco depois sócio de Hitler na tentativa nazi-fascista de dominar o mundo, tomou um trem em Roma e viajou para Munique, onde se tornaria o personagem-chave, entre outras coisas porque falava alemão, francês e inglês e não precisava de intérpretes, ele próprio tornando-se intérprete dos demais.
No trem que o levava à Alemanha, comentou com seu genro, o conde Ciano: "Veja a que situação chegaram os ingleses. As mulheres, impossibilitadas de amarem um homem, amam outras coisas. Uma delas legou sua fortuna a um papagaio. É o começo da decadência".
Mussolini e Hitler perderam a guerra, a Inglaterra perdeu seu império, apesar de sair vitoriosa no conflito. Preferindo um dia de leão a cem anos de ovelha, Mussolini percebera a decadência alheia sem perceber que um dia seria pendurado de cabeça para baixo numa praça de Milão. E nem tinha um papagaio ao qual deixasse a herança de sua própria decadência.


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