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CARLOS HEITOR CONY
Os começos da decadência
Passei os últimos dias do
ano atracado a um grosso
volume de ensaios sobre a decadência, analisada por vários autores, alguns clássicos, outros modernos. Não apenas a decadência
individual, que nos atinge a todos
mais cedo ou mais tarde, conforme as circunstâncias, mas a decadência de empresas, movimentos
culturais, sistemas de pensamento e impérios.
O exemplo mais espalhafatoso
desse tipo de decadência foi a do
Império Romano, império que
atravessou séculos e cuja queda
continua sendo pesquisada, sobretudo agora, a pretexto de uma
comparação com a atual hegemonia norte-americana, que, de
certa forma, pode ser considerada
uma expressão imperialista.
Houve decadências menores e
uma delas, por ser recente, merece
meditação. Em tempo: o esboroar
da União Soviética não faz parte
do livro por ser próximo demais,
pedindo perspectiva para ser julgado. E, a falar a verdade, talvez
permaneça em processo, se levarmos em conta o arsenal tecnológico que ainda possui, apesar de
fragmentado nas repúblicas que
formavam, até pouco tempo
atrás, a poderosa união socialista.
Fiquemos com o exemplo de
Roma e da Inglaterra, admitindo
que o Império Britânico tenha
acabado, historicamente, no final
da Segunda Guerra Mundial. O
declínio de Roma, cuja força e
amplidão duraram mais, teve vários motivos e diferentes causas. O
próprio Gibbon, que é obrigatoriamente citado quando se toca
no assunto, arrolou, entre os motivos e causas da decadência, desde o surgimento das hordas bárbaras além do Danúbio e do Reno
até a mania dos romanos de tomar banho na termas que proliferavam na então "caput mundi".
Com exceção das campanhas
militares que expandiam o império e o mantinham, os negócios
públicos eram entregues a subordinados, ao que hoje chamamos
de segundo escalão. Os principais
líderes, os pais da pátria e seus
protegidos passavam o dia mergulhados nos frigidários e tepidários, onde comiam, jogavam, recitavam poemas e, em alguns casos,
se entregavam a práticas homossexuais. Tinha de dar no que deu:
os bárbaros chegaram às portas
de Roma, e um deles a saqueou.
No caso da Inglaterra, o furo foi
mais embaixo, se confrontarmos
o tamanho e a duração do Império Britânico com a grandeza e a
duração do Império Romano. Em
termos esquemáticos, mais ou
menos aceitos pelos historiadores,
a supremacia inglesa prevaleceu
desde a queda de Napoleão, em
1915, até o final da última guerra
mundial, em 1945, quando as colônias foram gradualmente libertadas e reloteadas as zonas de influência entre as duas principais
potências que saíram vitoriosas
no conflito: os Estados Unidos e a
União Soviética.
Como acontece com os indivíduos, houve sinais quase imperceptíveis da decadência que fez
esboroar o império que teve na
era vitoriana seu período de
maior esplendor. Um desses sinais
foi detectado, curiosamente, nada
mais, nada menos, por Benito
Mussolini, um desvairado que
tentava reviver o Império de Roma, substituindo as águias de
suas falanges pelas camisas negras das esquadras fascistas.
O cenário foi o seguinte: Hitler
havia anexado a Áustria e tentava anexar a Tcheco-Eslováquia,
onde havia uma minoria de sudetos. Na realidade, o mundo percebeu que Hitler preparava uma
nova guerra mundial para vingar
o Tratado de Versalhes e impor a
supremacia da raça ariana. Por
intermédio dos líderes das principais nações da época, Chamberlain, da Inglaterra, Daladier, da
França, monitorados à distância
por Roosevelt, procuravam deter
Hitler em nível diplomático.
Chamberlain, chefe do governo
inglês, teve diversas entrevistas
pessoais com o ditador nazista e
nada conseguiu. Hitler deu um
ultimato e estava pronto a invadir a Tcheco-Eslováquia quando
Mussolini entrou na jogada, sugerindo uma reunião em Munique
entre os interessados. Todos aceitaram a idéia. Aparentemente, a
paz estava salva. O primeiro-ministro inglês, com seu guarda-chuva folclórico, num de seus retornos a Londres, seria recebido
como o Anjo da Paz.
Teve de voltar a Hitler, que continuava com a idéia fixa de anexar os sudetos que viviam fora
das fronteiras da Alemanha, mas,
na realidade, preparando uma
guerra em que pudesse anexar o
resto da Europa. Foi então que
Mussolini, pouco depois sócio de
Hitler na tentativa nazi-fascista
de dominar o mundo, tomou um
trem em Roma e viajou para Munique, onde se tornaria o personagem-chave, entre outras coisas
porque falava alemão, francês e
inglês e não precisava de intérpretes, ele próprio tornando-se intérprete dos demais.
No trem que o levava à Alemanha, comentou com seu genro, o
conde Ciano: "Veja a que situação chegaram os ingleses. As mulheres, impossibilitadas de amarem um homem, amam outras
coisas. Uma delas legou sua fortuna a um papagaio. É o começo da
decadência".
Mussolini e Hitler perderam a
guerra, a Inglaterra perdeu seu
império, apesar de sair vitoriosa
no conflito. Preferindo um dia de
leão a cem anos de ovelha, Mussolini percebera a decadência
alheia sem perceber que um dia
seria pendurado de cabeça para
baixo numa praça de Milão. E
nem tinha um papagaio ao qual
deixasse a herança de sua própria
decadência.
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