São Paulo, quarta-feira, 07 de fevereiro de 2001

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MÚSICA

Caixa reúne nove discos originais da matriarca negra, mas não tem lançamento comercial

Clementina sai em CD para poucos

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Hoje ela faria 100, ou 99, ou 101, ou outros anos (não há concórdia sobre sua certidão de nascimento), e permanece um ponto de interrogação para quem nasceu ou vive na cultura do CD. A matriarca negra fluminense Clementina de Jesus (1902-87) virou há pouco presente para 3.000 clientes da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras -mas só para eles.
A caixa "Clementina de Jesus -100 Anos" reúne, em oito CDs e um riquíssimo libreto informativo, os nove LPs que a artista, para muitos de estatura e importância equivalentes à de Pixinguinha (1897-1973), gravou originalmente para a Odeon (hoje EMI).
A EMI, para variar, tarda. Anuncia que, devido ao acordo de exclusividade com a BR, adiou o lançamento comercial para o segundo semestre. Por enquanto, sua obra em circulação resume-se a coletâneas de faixas reviradas e despriorizadas.
O poeta e pesquisador Hermínio Bello de Carvalho, 65, o homem que descobriu Clementina -quando ela própria tinha cerca de 65- e o responsável pelo projeto de reedição, é quem reclama:
"Imagino a dificuldade das empresas em situar Clementina nos nichos que inventaram para classificar artistas assim como classificam, por categoria, o público consumidor. Não sabem se devem vendê-la como sertaneja ou pagodeira, que são dois nichos da moda, ou então colocá-la na prateleira das coisas exóticas. Como não conseguem situá-la condignamente, incluem-na aleatoriamente, por exemplo, nessa coleção "Raízes do Samba" (da mesma EMI), que é um verdadeiro atentado cultural. Retalham trabalhos conceituais e fazem coleções absurdas, sem nenhuma lógica".
Ele fala da dificuldade em emplacar o projeto e das razões de ficarem faltando, para a discografia integral da artista, os discos "Clementina, Cadê Você?" (lançado em 70 pelo Museu da Imagem e do Som) e "O Canto dos Escravos" (de Clementina com Doca e Geraldo Filme, editado em 82):
"Há mais de 20 anos luto para fazer essa coleção. Nada se faz facilmente em nosso país, sobretudo quando se trata de cultura. O disco do museu ficou de fora porque a engrenagem burocrática ainda é um fator invencível em certas horas. E também não consegui incluir na coleção algumas faixas com Milton Nascimento, outra com Tetê Espíndola, alguns compactos que ela gravou".
Comemora, então, a vitória parcial com a edição elitista da BR: "A BR Distribuidora me proporcionou realizar um velho sonho, muito comum em países mais civilizados, o de tratar com dignidade e respeito a arte suprema de uma artista do porte de Clementina. Cada detalhe da caixa revela a intenção da equipe que formei: tratá-la com respeito, com a mesma nobreza com que ela se cobria de rendas".
Hermínio lembra o primeiro encontro com Clementina, em 63: "Existem tantas versões que eu mesmo às vezes me confundo. Foi na Taberna da Glória, que Mário de Andrade frequentava e onde também, antes de Clementina, bebi com Ismael Silva e Aracy de Almeida. Acho que isso diz tudo".
Ele conta sobre a evolução de vê-la cantando espontaneamente e, depois, introduzi-la aos poucos no mercado musical nacional:
"Fiquei muito confuso com toda aquela beleza. Nunca pensei que fosse alcançar a dimensão que alcançou, achava que o Brasil não estava preparado para entendê-la. Claro que não foi fácil para mim participar desse processo. Quis preservá-la de muitas coisas, mas era muito generosa e de uma generosidade impossível de gerenciar. Mas consegui produzir oito discos, bem menos do que gostaria".
A primeira aparição pública de Clementina se deu em dezembro de 64, numa já ousada ponte cultural. Ela se apresentou com o violonista Turíbio Santos, casando saberes clássicos e populares.
A cronologia da caixa se inicia no momento seguinte, reunindo num CD os dois volumes do show "Rosa de Ouro" (de 65 e 67). Produzido por Hermínio, reunia a ex-vedete Araci Cortes -então em ostracismo-, a jovem-velha revelação Clementina e um conjunto de bambas em que despontava o jovem Paulinho da Viola.
Em 66, "Clementina de Jesus" foi a estréia solo da cantora, entre sambas, jongos e curimas quase sempre apanhados da tradição popular. O ano de 68 foi abundante, com três projetos especiais, sempre com a participação de Hermínio.
O clássico "Gente da Antiga" reunia Clementina a dois fundadores do samba, Pixinguinha e João da Baiana; "Mudando de Conversa" era um show em que Clementina passava de raspão, com Cyro Monteiro e Nora Ney; "Fala Mangueira!", por fim, exaltava a escola de samba nas figuras nobres de Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e Odete Amaral.
Concluem o pacote os três últimos trabalhos solo de Clementina, "Marinheiro Só" (70), "Clementina de Jesus" (76, com participação de Carlos Cachaça) e "Clementina" (79, com convidados como Clara Nunes, Ivone Lara e João Bosco). Dali até sua morte, em 87, ela ficaria em seu canto, semicalada -como permanece, ainda, em 2001.



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