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MÚSICA
Caixa reúne nove discos originais da matriarca negra, mas não tem lançamento comercial
Clementina sai em CD para poucos
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Hoje ela faria 100, ou 99, ou 101,
ou outros anos (não há concórdia
sobre sua certidão de nascimento), e permanece um ponto de interrogação para quem nasceu ou
vive na cultura do CD. A matriarca negra fluminense Clementina
de Jesus (1902-87) virou há pouco
presente para 3.000 clientes da BR
Distribuidora, subsidiária da Petrobras -mas só para eles.
A caixa "Clementina de Jesus -100 Anos" reúne, em oito CDs e
um riquíssimo libreto informativo, os nove LPs que a artista, para
muitos de estatura e importância
equivalentes à de Pixinguinha
(1897-1973), gravou originalmente para a Odeon (hoje EMI).
A EMI, para variar, tarda.
Anuncia que, devido ao acordo de
exclusividade com a BR, adiou o
lançamento comercial para o segundo semestre. Por enquanto,
sua obra em circulação resume-se
a coletâneas de faixas reviradas e
despriorizadas.
O poeta e pesquisador Hermínio Bello de Carvalho, 65, o homem que descobriu Clementina
-quando ela própria tinha cerca
de 65- e o responsável pelo projeto de reedição, é quem reclama:
"Imagino a dificuldade das empresas em situar Clementina nos
nichos que inventaram para classificar artistas assim como classificam, por categoria, o público
consumidor. Não sabem se devem vendê-la como sertaneja ou
pagodeira, que são dois nichos da
moda, ou então colocá-la na prateleira das coisas exóticas. Como
não conseguem situá-la condignamente, incluem-na aleatoriamente, por exemplo, nessa coleção "Raízes do Samba" (da mesma
EMI), que é um verdadeiro atentado cultural. Retalham trabalhos
conceituais e fazem coleções absurdas, sem nenhuma lógica".
Ele fala da dificuldade em emplacar o projeto e das razões de ficarem faltando, para a discografia
integral da artista, os discos "Clementina, Cadê Você?" (lançado
em 70 pelo Museu da Imagem e
do Som) e "O Canto dos Escravos" (de Clementina com Doca e
Geraldo Filme, editado em 82):
"Há mais de 20 anos luto para
fazer essa coleção. Nada se faz facilmente em nosso país, sobretudo quando se trata de cultura. O
disco do museu ficou de fora porque a engrenagem burocrática
ainda é um fator invencível em
certas horas. E também não consegui incluir na coleção algumas
faixas com Milton Nascimento,
outra com Tetê Espíndola, alguns
compactos que ela gravou".
Comemora, então, a vitória parcial com a edição elitista da BR: "A
BR Distribuidora me proporcionou realizar um velho sonho,
muito comum em países mais civilizados, o de tratar com dignidade e respeito a arte suprema de
uma artista do porte de Clementina. Cada detalhe da caixa revela a
intenção da equipe que formei:
tratá-la com respeito, com a mesma nobreza com que ela se cobria
de rendas".
Hermínio lembra o primeiro
encontro com Clementina, em 63:
"Existem tantas versões que eu
mesmo às vezes me confundo. Foi
na Taberna da Glória, que Mário
de Andrade frequentava e onde
também, antes de Clementina,
bebi com Ismael Silva e Aracy de
Almeida. Acho que isso diz tudo".
Ele conta sobre a evolução de
vê-la cantando espontaneamente
e, depois, introduzi-la aos poucos
no mercado musical nacional:
"Fiquei muito confuso com toda aquela beleza. Nunca pensei
que fosse alcançar a dimensão
que alcançou, achava que o Brasil
não estava preparado para entendê-la. Claro que não foi fácil para
mim participar desse processo.
Quis preservá-la de muitas coisas,
mas era muito generosa e de uma
generosidade impossível de gerenciar. Mas consegui produzir
oito discos, bem menos do que
gostaria".
A primeira aparição pública de
Clementina se deu em dezembro
de 64, numa já ousada ponte cultural. Ela se apresentou com o
violonista Turíbio Santos, casando saberes clássicos e populares.
A cronologia da caixa se inicia
no momento seguinte, reunindo
num CD os dois volumes do show
"Rosa de Ouro" (de 65 e 67). Produzido por Hermínio, reunia a
ex-vedete Araci Cortes -então
em ostracismo-, a jovem-velha
revelação Clementina e um conjunto de bambas em que despontava o jovem Paulinho da Viola.
Em 66, "Clementina de Jesus"
foi a estréia solo da cantora, entre
sambas, jongos e curimas quase
sempre apanhados da tradição
popular. O ano de 68 foi abundante, com três projetos especiais,
sempre com a participação de
Hermínio.
O clássico "Gente da Antiga"
reunia Clementina a dois fundadores do samba, Pixinguinha e
João da Baiana; "Mudando de
Conversa" era um show em que
Clementina passava de raspão,
com Cyro Monteiro e Nora Ney;
"Fala Mangueira!", por fim, exaltava a escola de samba nas figuras
nobres de Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e Odete
Amaral.
Concluem o pacote os três últimos trabalhos solo de Clementina, "Marinheiro Só" (70), "Clementina de Jesus" (76, com participação de Carlos Cachaça) e
"Clementina" (79, com convidados como Clara Nunes, Ivone Lara e João Bosco). Dali até sua morte, em 87, ela ficaria em seu canto,
semicalada -como permanece,
ainda, em 2001.
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