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CRÍTICA
Conto de fadas revela um mundo vazio e sem arte
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
A certa altura de "Downtown 81" um sujeito diz: "Todo mundo vive no passado. O que há de errado com o presente?". A
julgar pelo filme, todo mundo
quer (re)ver ou (re)viver o momento em que o pobre ficou rico,
em que o marginal foi reconhecido, em que o Zé Ninguém virou
celebridade. Todo mundo quer
ver esse momento que só é mítico
a posteriori ou quando percebido
à distância. Por isso, "Downtown
81" não poderia ser um documentário. É, antes, como anuncia uma
voz "off" ainda nos créditos, um
"conto de fadas".
Na verdade, o filme não conta o
"conto de fadas" que transformou Jean-Michel Basquiat (1960-1988), descendente de haitianos e
porto-riquenhos do Brooklyn, de
grafiteiro marginal das ruas de
Nova York em um dos maiores
expoentes da arte americana dos
anos 80 - e, por consequência,
em um dos maiores astros do
mercado de artes internacional.
Antes, Edo Bertoglio usa o próprio Basquiat, que morreu de
overdose aos 27, como fio condutor e ator, representando a si mesmo, aos 20 anos, às vésperas da fama (1980-81), e o acompanha numa espécie de recriação alegórica
desse momento que todo mundo
quer ver, quando o artista será por
fim reconhecido, saindo da margem para o sucesso, num mundo
em que todo mundo passa a vida
batendo às portas do mercado.
Não sem algum humor e alguma ironia, "Downtown 81" é uma
história de Cinderela transportada para o Lower East Side de Manhattan. Mas, ainda que use drogados, pequenos assaltantes, go-go girls e bandas new wave como
elenco, é um filme convencional.
Seguindo a via aberta por documentários como "Pull My Daisy",
de Robert Frank, que retratava a
cena beat nos anos 50 em Nova
York, e inspirado na recriação
desleixada do cotidiano underground proposta pelo cinema de
Andy Warhol, mas sem a radicalidade ou a originalidade dele, Bertoglio fica no meio do caminho.
Filmes que pretendem captar
um momento ou um movimento
cultural sempre dependem de um
tanto de mistificação. "Downtown 81", porém, não chega nem
a fazer compreender o artista
(não parece ser esse o objetivo, já
que mal se vêem as obras) ou a
emergência do hip hop e da música new wave em NY, nem a se afirmar como linguagem cinematográfica. Sua mistificação revela
um mundo vazio e sem arte (não
se vêem as telas e a música das
bandas em geral não é das melhores) e um cinema nostálgico, feito
à moda antiga (filmado em 81, só
foi finalizado em 2000).
É até possível dizer que a obra
de arte, no caso, é a própria cidade, já que Basquiat é um pichador
e chega a se referir às ruas como
arte. Ainda assim, o resultado é
apenas a reafirmação do mito do
artista rebelde e de clichês como:
"Nesta cidade, tudo é possível".
Como nos filmes de Warhol, os
diálogos e as situações parecem
estar sendo criados na hora, entre
amigos, e interpretados por doidões e canastrões, com a diferença de que aqui isso não é nem novidade nem tão engraçado. A ironia não é suficiente. A não ser
quando a realmente mítica Deborah Harry surge de mendiga desgrenhada ao final, deitada entre
caixas de papelão num beco escuro, a jurar que é uma princesa enfeitiçada e a pedir do pintor o beijo que por fim a restituirá à sua
forma original e permitirá, ao
mesmo tempo, que ele realize todos os seus desejos.
Downtown 81
Direção: Edo Bertoglio
Produção: EUA, 2000
Com: Jean-Michel Basquiat, Deborah
Harry e David McDermott
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco 3
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