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São Paulo, sexta-feira, 07 de fevereiro de 2003

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CRÍTICA

Conto de fadas revela um mundo vazio e sem arte

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

A certa altura de "Downtown 81" um sujeito diz: "Todo mundo vive no passado. O que há de errado com o presente?". A julgar pelo filme, todo mundo quer (re)ver ou (re)viver o momento em que o pobre ficou rico, em que o marginal foi reconhecido, em que o Zé Ninguém virou celebridade. Todo mundo quer ver esse momento que só é mítico a posteriori ou quando percebido à distância. Por isso, "Downtown 81" não poderia ser um documentário. É, antes, como anuncia uma voz "off" ainda nos créditos, um "conto de fadas".
Na verdade, o filme não conta o "conto de fadas" que transformou Jean-Michel Basquiat (1960-1988), descendente de haitianos e porto-riquenhos do Brooklyn, de grafiteiro marginal das ruas de Nova York em um dos maiores expoentes da arte americana dos anos 80 - e, por consequência, em um dos maiores astros do mercado de artes internacional.
Antes, Edo Bertoglio usa o próprio Basquiat, que morreu de overdose aos 27, como fio condutor e ator, representando a si mesmo, aos 20 anos, às vésperas da fama (1980-81), e o acompanha numa espécie de recriação alegórica desse momento que todo mundo quer ver, quando o artista será por fim reconhecido, saindo da margem para o sucesso, num mundo em que todo mundo passa a vida batendo às portas do mercado.
Não sem algum humor e alguma ironia, "Downtown 81" é uma história de Cinderela transportada para o Lower East Side de Manhattan. Mas, ainda que use drogados, pequenos assaltantes, go-go girls e bandas new wave como elenco, é um filme convencional. Seguindo a via aberta por documentários como "Pull My Daisy", de Robert Frank, que retratava a cena beat nos anos 50 em Nova York, e inspirado na recriação desleixada do cotidiano underground proposta pelo cinema de Andy Warhol, mas sem a radicalidade ou a originalidade dele, Bertoglio fica no meio do caminho.
Filmes que pretendem captar um momento ou um movimento cultural sempre dependem de um tanto de mistificação. "Downtown 81", porém, não chega nem a fazer compreender o artista (não parece ser esse o objetivo, já que mal se vêem as obras) ou a emergência do hip hop e da música new wave em NY, nem a se afirmar como linguagem cinematográfica. Sua mistificação revela um mundo vazio e sem arte (não se vêem as telas e a música das bandas em geral não é das melhores) e um cinema nostálgico, feito à moda antiga (filmado em 81, só foi finalizado em 2000).
É até possível dizer que a obra de arte, no caso, é a própria cidade, já que Basquiat é um pichador e chega a se referir às ruas como arte. Ainda assim, o resultado é apenas a reafirmação do mito do artista rebelde e de clichês como: "Nesta cidade, tudo é possível".
Como nos filmes de Warhol, os diálogos e as situações parecem estar sendo criados na hora, entre amigos, e interpretados por doidões e canastrões, com a diferença de que aqui isso não é nem novidade nem tão engraçado. A ironia não é suficiente. A não ser quando a realmente mítica Deborah Harry surge de mendiga desgrenhada ao final, deitada entre caixas de papelão num beco escuro, a jurar que é uma princesa enfeitiçada e a pedir do pintor o beijo que por fim a restituirá à sua forma original e permitirá, ao mesmo tempo, que ele realize todos os seus desejos.


Downtown 81   
Direção: Edo Bertoglio
Produção: EUA, 2000
Com: Jean-Michel Basquiat, Deborah Harry e David McDermott
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 3



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