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São Paulo, sexta-feira, 07 de fevereiro de 2003

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Nara em cores


Após reedição da fase "preto-e-branco", "Leão" traz os anos "coloridos" da cantora


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Agora a obra está (quase) completa. Numa segunda caixa cúbica de 14 CDs, simetricamente chamada "Leão" (a primeira era "Nara"), a Universal termina de saldar sua dívida com a memória do ícone Nara Leão (1942-89). Após a reedição da fase "preto-e-branco" da cantora, é a vez dos sombrios anos "coloridos", entre 1977 e 1989.
Desta vez, é gente de fora que interfere na restituição da história total da artista capixaba/carioca que ajudou a fundar a bossa nova e nunca se acomodou à própria invenção. Roberto Carlos proibiu a reedição da faixa "Quero Que Vá Tudo pro Inferno", do LP de 78. O título original do disco, "E Que Tudo Mais Vá pro Inferno", também está vetado.
Profundamente religioso, há pouco Roberto revelou que sofre (e se trata) de obsessão compulsiva -assim se explicaria a repulsa pelo termo "inferno", que ele próprio utilizou para elaborar, em 65, um de seus maiores sucessos.
Seja como for, o disco fechado de Nara não tem nada a ver com isso. E fica profanada pelo próprio autor a homenagem que Nara prestara a ele e a Erasmo Carlos, numa época em que era plena cafonice dar ouvidos à face romântica dos ex-ídolos iê-iê-iê.
Outro lapso da coleção, a falta da faixa "Penas do Tiê" no disco "Romance Popular" (81) deve-se à pendente acusação de plágio sofrida pelo suposto autor, Fagner.
Fora tais incidentes, "Leão" oferece as últimas frestas de luz e a fase de sombra da mais participante artista da fase heróica da MPB. Começa por um apêndice, a trilha do musical "Liberdade Liberdade" (66), que havia sido esquecida da caixa anterior. Artisticamente pífia, vale pelo documento, resgatando um dos mais furiosos libelos contra o regime militar.
Daquele momento até a chegada ao material de "Leão", Nara encerrou sua luminosa fase "preto-e-branco", exilou-se, abandonou a carreira, voltou em 75 com um LP de canções infantis e, divorciada do Brasil grande que sonhara, iniciou uma profunda jornada musical para dentro de si.
Começou pedindo canções inéditas a colegas de geração e filosofia, para o afinado disco de duetos "Meus Amigos São um Barato" (77). Invadiu a contramão do "chique" com Roberto e Erasmo. Para pagar tal "pecado", dedicou "Com Açúcar com Afeto" (80) à obra de Chico Buarque, que parecia um pedaço dela própria.
Beliscou o pop e a geração nordestina dos 70 no afiado "Romance Popular" (81) e cobiçou o pop e a bossa desviante de João Donato em "Nasci para Bailar" (82), nos últimos flertes com o "inédito".
É que então Nara já estava plenamente envolvida com um tumor no cérebro que começara a se manifestar já em 1979 e lhe provocava toda sorte de desconfortos.
Ao desconforto respondeu retrocedendo à substância que, recém-politizada, rejeitara já em sua estréia em disco, em 64: a bossa nova. Após uma visita ao samba à moda de Paulinho da Viola ("Meu Samba Encabulado", 83), fez três discos delicados de bossa.
E mergulhou ainda mais fundo, gravando material para dois derradeiros discos de standards norte-americanos pré-bossa vertidos para o português. Entranhas expostas, Nara morreu de câncer em 89, ainda brigada com o Brasil.


Leão     
Artista: Nara Leão
Lançamento: Universal
Quanto: de R$ 200 a R$ 250, em média



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