São Paulo, segunda-feira, 07 de fevereiro de 2005

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NELSON ASCHER

Outro mundo é possível

O final de janeiro nos trouxe três grandes espetáculos: o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça; o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre; e as eleições iraquianas.
Embora seja comum contrapor entre si as reuniões de Davos e Porto Alegre, suas semelhanças são maiores do que as diferenças. Para começar, tratam-se, em ambos os casos, de eventos auto-referenciais, narcisistas e inúteis. Tanto aqui no cone sul, como lá na montanha mágica de Thomas Mann, os participantes, com poucas e não obrigatoriamente honrosas exceções, são uma elite cosmopolita auto-selecionada que, malgrado a amplitude de suas preocupações e a grandiloqüência de suas propostas, representa apenas a si mesma.
O pensamento que a move vem sendo batizado genericamente de "progressivismo transnacional". Essa ideologia, que ocupou o vácuo deixado pela derrocada, em 1989, da esquerda tradicional, se compõe de elementos tão disparatados que, à primeira vista, nem sequer se apresenta como uma ideologia propriamente dita. Quem suporia que existe um nexo entre gente dedicada a salvar baleias, militantes que buscam "persuadir" alguns países que já foram escravagistas (mas não outros, nem aqueles que ainda o são) a pagarem pelos pecados passados subsidiando ditadores africanos contemporâneos, jornalistas que se afirmam "neutros", defensores dos direitos humanos (novamente: em alguns, mas não em outros países), professores universitários engajados, milionários filantrópicos etc.? E, no entanto, essa variedade humana compartilha noções importantes, uma verdadeira visão de mundo e metas bem definidas.
Todos os que militam em nome dessas causas têm em comum o fato de se julgarem a vanguarda do idealismo global, os paladinos desinteressados dos "oprimidos" ou "excluídos". Eles (e elas) raramente foram eleitos, não respondem a ninguém, exceto a seus pares ou grupos (e, é claro, mecenas) e procuram exercer, sobre a política de povos que mal os conhecem, uma influência derivada da pureza e superioridade auto-conferidas de sua missão. Eles acreditam que os problemas do mundo (que diagnosticam segundo as próprias luzes) têm causas e causadores específicos: o capitalismo, a ganância, o mercado. A miséria, a seu ver, decorre sempre do egoísmo dos países ricos, seja por causa da fome de lucros, no presente, seja por causa do colonialismo, no passado, e nunca deriva de características estruturais, culturais ou históricas das sociedades afetadas. Sugeri-lo equivaleria a se confessar "racista".
Os "progressivistas transnacionais" não crêem no Estado-nação e suas instituições (parlamentos, exércitos, "checks and balances"). Quanto mais consolidada e antiga a democracia num país, mais suspeita ela é, e somente os do Terceiro Mundo, graças às culpas alheias, merecem tolerância, de modo que tiranias e cleptocracias latino-americanas, africanas ou asiáticas devem ser defendidas, na sua autenticidade, dos males que as democracias possam fazer a suas castas dirigentes.
De acordo com essa ideologia, a burrice manipulada dos eleitores precisa ser controlada e corrigida por organismos internacionais (quanto menos eleitos, melhor), como a Corte Penal Internacional, a União Européia e, sobretudo, a ONU. E pelas organizações não-governamentais, as ONGs, muitas ONGs, pois, que uma delas se dedique nominalmente à proteção do plâncton no lago Baikal não a impede de passar a maior parte do tempo se ocupando, digamos, dos sem-terra brasileiros.
Não surpreende, portanto, que, no que concerne aos quesitos acima, "davosianos" e "portalegrenses" estejam, em geral, de acordo. Um fórum não é a contrapartida dialética nem o complemento hipócrita do rival. A relação que eles mantêm entre si é a de graduação e pós-graduação. Descontando personagens que, valendo-se da ponte aérea, já participam de ambos, o militante típico inicia sua carreira no sul e a continua no norte. Não faltaram, em Davos, de Bill Clinton a Joschka Fischer, estrelas que se graduaram nos movimentos de 68. E, nos assuntos que importam, as opiniões de George Soros e José Bové são intercambiáveis, se bem que o "camponês" possa expressá-las num inglês melhor.
Assim, só restava a quem desejasse um mínimo de biodiversidade nesta época do ano acompanhar as eleições iraquianas. Estas, vilipendiadas simultaneamente na Suíça e no Rio Grande do Sul, distinguiam-se dos dois fóruns por não serem, nem pretenderem ser, perfeitas. Elas ocorreram sob tutela de uma coalizão militar sem a qual jamais teriam ocorrido, meio como, após a Segunda Guerra, as primeiras eleições alemãs, japonesas, francesas, italianas etc. Sua legitimidade não pára de ser questionada pelos bem-pensantes que não se lembram de aplicar critérios tão rigidamente ideais às eleições da Autoridade Palestina (as recentes e as que, em tempos remotos, sufragaram o finado Yasser Arafat como "líder democraticamente escolhido do povo palestino").
É difícil imaginar que, com seu senso de humor peculiar, a administração norte-americana tenha feito o escrutínio na Mesopotâmia coincidir com os dois shows transnacionais somente por distração ou acidente. Que este tenha ocorrido sem que os assim chamados "insurgentes" conseguissem frustrá-lo, além de fortalecer os que contribuíram para seu sucesso, serviu para remover temporariamente os Alpes e os pampas do mapa político, desapropriando, inclusive, um slogan famoso. Afinal, numa região pouco habituada à democracia, como é o Oriente Médio, as eleições iraquianas provaram na prática que "outro mundo é possível".


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