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NELSON ASCHER
Outro mundo é possível
O final de janeiro nos trouxe três grandes espetáculos:
o Fórum Econômico Mundial, em
Davos, na Suíça; o Fórum Social
Mundial, em Porto Alegre; e as
eleições iraquianas.
Embora seja comum contrapor
entre si as reuniões de Davos e
Porto Alegre, suas semelhanças
são maiores do que as diferenças.
Para começar, tratam-se, em ambos os casos, de eventos auto-referenciais, narcisistas e inúteis.
Tanto aqui no cone sul, como lá
na montanha mágica de Thomas
Mann, os participantes, com poucas e não obrigatoriamente
honrosas exceções, são uma elite
cosmopolita auto-selecionada
que, malgrado a amplitude de
suas preocupações e a grandiloqüência de suas propostas, representa apenas a si mesma.
O pensamento que a move vem
sendo batizado genericamente de
"progressivismo transnacional".
Essa ideologia, que ocupou o vácuo deixado pela derrocada, em
1989, da esquerda tradicional, se
compõe de elementos tão disparatados que, à primeira vista, nem
sequer se apresenta como uma
ideologia propriamente dita.
Quem suporia que existe um nexo
entre gente dedicada a salvar baleias, militantes que buscam "persuadir" alguns países que já foram escravagistas (mas não outros, nem aqueles que ainda o
são) a pagarem pelos pecados
passados subsidiando ditadores
africanos contemporâneos, jornalistas que se afirmam "neutros",
defensores dos direitos humanos
(novamente: em alguns, mas não
em outros países), professores
universitários engajados, milionários filantrópicos etc.? E, no entanto, essa variedade humana
compartilha noções importantes,
uma verdadeira visão de mundo
e metas bem definidas.
Todos os que militam em nome
dessas causas têm em comum o
fato de se julgarem a vanguarda
do idealismo global, os paladinos
desinteressados dos "oprimidos"
ou "excluídos". Eles (e elas) raramente foram eleitos, não respondem a ninguém, exceto a seus pares ou grupos (e, é claro, mecenas)
e procuram exercer, sobre a política de povos que mal os conhecem,
uma influência derivada da pureza e superioridade auto-conferidas de sua missão. Eles acreditam
que os problemas do mundo (que
diagnosticam segundo as próprias luzes) têm causas e causadores específicos: o capitalismo, a
ganância, o mercado. A miséria,
a seu ver, decorre sempre do
egoísmo dos países ricos, seja por
causa da fome de lucros, no presente, seja por causa do colonialismo, no passado, e nunca deriva
de características estruturais, culturais ou históricas das sociedades afetadas. Sugeri-lo equivaleria a se confessar "racista".
Os "progressivistas transnacionais" não crêem no Estado-nação
e suas instituições (parlamentos,
exércitos, "checks and balances").
Quanto mais consolidada e antiga a democracia num país, mais
suspeita ela é, e somente os do
Terceiro Mundo, graças às culpas
alheias, merecem tolerância, de
modo que tiranias e cleptocracias
latino-americanas, africanas ou
asiáticas devem ser defendidas,
na sua autenticidade, dos males
que as democracias possam fazer
a suas castas dirigentes.
De acordo com essa ideologia, a
burrice manipulada dos eleitores
precisa ser controlada e corrigida
por organismos internacionais
(quanto menos eleitos, melhor),
como a Corte Penal Internacional, a União Européia e, sobretudo, a ONU. E pelas organizações
não-governamentais, as ONGs,
muitas ONGs, pois, que uma delas se dedique nominalmente à
proteção do plâncton no lago Baikal não a impede de passar a
maior parte do tempo se ocupando, digamos, dos sem-terra brasileiros.
Não surpreende, portanto, que,
no que concerne aos quesitos acima, "davosianos" e "portalegrenses" estejam, em geral, de acordo.
Um fórum não é a contrapartida
dialética nem o complemento hipócrita do rival. A relação que
eles mantêm entre si é a de graduação e pós-graduação. Descontando personagens que, valendo-se da ponte aérea, já participam
de ambos, o militante típico inicia
sua carreira no sul e a continua
no norte. Não faltaram, em Davos, de Bill Clinton a Joschka Fischer, estrelas que se graduaram
nos movimentos de 68. E, nos assuntos que importam, as opiniões
de George Soros e José Bové são
intercambiáveis, se bem que o
"camponês" possa expressá-las
num inglês melhor.
Assim, só restava a quem desejasse um mínimo de biodiversidade nesta época do ano acompanhar as eleições iraquianas. Estas,
vilipendiadas simultaneamente
na Suíça e no Rio Grande do Sul,
distinguiam-se dos dois fóruns
por não serem, nem pretenderem
ser, perfeitas. Elas ocorreram sob
tutela de uma coalizão militar
sem a qual jamais teriam ocorrido, meio como, após a Segunda
Guerra, as primeiras eleições alemãs, japonesas, francesas, italianas etc. Sua legitimidade não pára de ser questionada pelos bem-pensantes que não se lembram de
aplicar critérios tão rigidamente
ideais às eleições da Autoridade
Palestina (as recentes e as que, em
tempos remotos, sufragaram o finado Yasser Arafat como "líder
democraticamente escolhido do
povo palestino").
É difícil imaginar que, com seu
senso de humor peculiar, a administração norte-americana tenha
feito o escrutínio na Mesopotâmia coincidir com os dois shows
transnacionais somente por distração ou acidente. Que este tenha ocorrido sem que os assim
chamados "insurgentes" conseguissem frustrá-lo, além de fortalecer os que contribuíram para
seu sucesso, serviu para remover
temporariamente os Alpes e os
pampas do mapa político, desapropriando, inclusive, um slogan
famoso. Afinal, numa região pouco habituada à democracia, como
é o Oriente Médio, as eleições iraquianas provaram na prática que
"outro mundo é possível".
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