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"Memórias de uma Gueixa" é prazeroso passatempo
NINA HORTA
especial para a Folha
O autor do livro "Memórias de
uma Gueixa" é americano, nasceu
no Tennessee e é mestre de história do Japão pela Universidade de
Columbia. Mora em Bookline,
Massachusetts com a mulher e
dois filhos pequenos.
Desobedeceu a primeira regra
para escrever um bom livro: falar
sobre o que está embaixo do seu
nariz. Foi procurar as musas numa
extensão de sua tese -na vida das
gueixas- em vez de se debruçar
sobre os subúrbios, a luta pelos
cargos na universidade e os churrascos de domingo na piscina.
Depois de já haver escrito o rascunho de um calhamaço de 800
páginas, ao longo de quase seis
anos, soube de uma ex-gueixa de
meia-idade que estava disposta a
lhe dar informações sobre sua vida.
Correu para o Japão, passou lá
uns dias e ficou tão impressionado
com as novas revelações que rasgou o livro e escreveu outro com a
história de Sayumi.
Tudo começa numa pequena aldeia de pescadores em 1929. A menina tem nove anos, é uma flor em
botão de olhos acinzentados. Com
a iminência da morte da mãe e a
miséria batendo na porta é levada
como empregada-escrava para
uma "okyia" (casa de gueixas), em
Gion, distrito de Kioto. De menina
camponesa, (tal qual a heroína de
"Orgulho e Preconceito", inteligente e orgulhosa, cheia de vida
interior, lutando num meio de homens endinheirados e mães casamenteiras), vai se transformando
na gueixa que prometeu ser a si
mesma para alcançar a felicidade.
Essa felicidade só seria possível
junto ao homem que vira apenas
uma vez. E pelo qual se apaixonou, por causa de seus olhos bondosos, boca sensual e cheiro de
talco.
Para conseguir o amado, precisa
passar pelos obstáculos de toda
iniciação e aprendizado. Música e
seus instrumentos, dança e coreografias, o ritual do chá, a atitude
na conversa, a arte de se pentear e
de usar um quimono.
No percurso, encontra inimigas
como Hatsumomo, gueixa rival.
Amigas como Mameha, gueixa tutora, e Abóbora, aprendiz companheira. Enfrenta homens poderosos como o doutor Caranguejo,
que oferece o maior lance para ter
o privilégio de deflorá-la, e o senhor Presidente -o mais perfeito
e apagado dos gentis homens.
Aliás, os personagens são meio
esfumaçados e pouco definidos,
mas o livro prende a atenção. Se
quiser lê-lo, é pegar e ler de cabo a
rabo. Se largar, talvez não tenha
coragem de voltar, porque os atores não estarão chamando você
como se fossem conhecidos largados à própria sorte.
Um dos problemas de um romance, a meu ver insolúvel, é a
tradução. Por melhor que seja o
tradutor, como é o caso deste livro, não há como evitar as aléias
de pilriteiros e os poentes cor de
abricó maduro. Parece que o doutor Caranguejo, Abóbora e o senhor Presidente fazem parte destas armadilhas da língua que
transformam um livro americano
sobre gueixas em "Reinações de
Narizinho". Sem contar que a protagonista é a própria Emília, pois o
autor se utiliza dela para suas melhores e mais atrevidas metáforas.
O livro flui com facilidade, tem
suspense e maravilhosas descrições de quimonos. Mas começa a
perder o fio e o pique a partir da
Segunda Guerra até chegar à Nova
York de pós-guerra.
De Nova York, Sayuri vai contar
com sua própria voz, pelas palavras do autor, a sua história. Esse
truque se fez necessário, pois o
que o livro teria de melhor, que era
a informação, o pano de fundo, só
poderia ser explicado convincentemente a um ouvinte estrangeiro,
que não fosse versado no tema.
E assim, nos Estados Unidos,
Arthur Golden acabou o livro. A
essas alturas já nos fala sobre Sayumi como se também fosse uma
amiga distante. Já não a reconhece
como seu personagem. O que me
parece é que estouraram os prazos
de entrega, e ele fechou sua primeira obra sem arredondá-la o
bastante, sem refletir um pouco
mais sobre seus personagens, sem
costurar algumas situações.
O impacto do livro: best seller na
hora. Revistas e jornais americanos e ingleses se derreteram sobre
"Memórias de uma Gueixa".
"Um primeiro romance de aturdir, uma performance de tirar o
fôlego..."
"Golden nos dá, não só o retrato
rico e carinhoso de uma mulher,
mas também o retrato observado
de um grande universo anômalo e
quase extinto. É uma estréia de peso e bastante incomum."
Outro jornal ou revista que perdi
o comparou a Dickens.
Estão aí os críticos mais respeitados com seu consenso e só me resta enfiar a viola no saco. O que me
intriga saber é o que diriam se topassem com um Flaubert? Morreriam de emoção, com certeza. O
que pode ocasionar este desencontro da crítica com um leitor?
Acho que a idade é cínica, e que,
com o correr de uma vida longa,
perdemos os arroubos e a tolerância. Sobraram nas estantes só os
Faulkner, Prousts, um Elliot aqui,
outro acolá, Graciliano, Machado,
Pedro Nava, algumas biografias,
muitos livros sobre comida, bons.
Por excesso de peso e ingratidão
jogamos fora os namoros de adolescência, Pearl Buck, Lin Yutang,
que tanto prazer nos deram e que
corresponderiam a este livro.
Um avô, vendo as meninas de
biquíni em Copacabana, nos novos tempos de Twiggy, dizia com
um muxoxo -"Não têm por onde
se lhes pegue...". Aos velhos é preciso dar peso, vitamina, e não novelas de amor para fazer o tempo
passar mais depressa. O melhor é
nos recolhermos à nossa insignificância, deixar que os críticos critiquem e continuar com as cartas de
Virginia Woolf, "O Complexo de
Portnoy", "O Evangelho Segundo
São Matheus" e as bulas de remédios.
Livro: Memórias de uma Gueixa
Autor: Arthur Golden
Tradutora: Lya Luft
Lançamento: Imago
Preço: R$ 28 (459 págs.)
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