São Paulo, sábado, 7 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Memórias de uma Gueixa" é prazeroso passatempo

NINA HORTA
especial para a Folha

O autor do livro "Memórias de uma Gueixa" é americano, nasceu no Tennessee e é mestre de história do Japão pela Universidade de Columbia. Mora em Bookline, Massachusetts com a mulher e dois filhos pequenos.
Desobedeceu a primeira regra para escrever um bom livro: falar sobre o que está embaixo do seu nariz. Foi procurar as musas numa extensão de sua tese -na vida das gueixas- em vez de se debruçar sobre os subúrbios, a luta pelos cargos na universidade e os churrascos de domingo na piscina.
Depois de já haver escrito o rascunho de um calhamaço de 800 páginas, ao longo de quase seis anos, soube de uma ex-gueixa de meia-idade que estava disposta a lhe dar informações sobre sua vida.
Correu para o Japão, passou lá uns dias e ficou tão impressionado com as novas revelações que rasgou o livro e escreveu outro com a história de Sayumi.
Tudo começa numa pequena aldeia de pescadores em 1929. A menina tem nove anos, é uma flor em botão de olhos acinzentados. Com a iminência da morte da mãe e a miséria batendo na porta é levada como empregada-escrava para uma "okyia" (casa de gueixas), em Gion, distrito de Kioto. De menina camponesa, (tal qual a heroína de "Orgulho e Preconceito", inteligente e orgulhosa, cheia de vida interior, lutando num meio de homens endinheirados e mães casamenteiras), vai se transformando na gueixa que prometeu ser a si mesma para alcançar a felicidade.
Essa felicidade só seria possível junto ao homem que vira apenas uma vez. E pelo qual se apaixonou, por causa de seus olhos bondosos, boca sensual e cheiro de talco.
Para conseguir o amado, precisa passar pelos obstáculos de toda iniciação e aprendizado. Música e seus instrumentos, dança e coreografias, o ritual do chá, a atitude na conversa, a arte de se pentear e de usar um quimono.
No percurso, encontra inimigas como Hatsumomo, gueixa rival. Amigas como Mameha, gueixa tutora, e Abóbora, aprendiz companheira. Enfrenta homens poderosos como o doutor Caranguejo, que oferece o maior lance para ter o privilégio de deflorá-la, e o senhor Presidente -o mais perfeito e apagado dos gentis homens.
Aliás, os personagens são meio esfumaçados e pouco definidos, mas o livro prende a atenção. Se quiser lê-lo, é pegar e ler de cabo a rabo. Se largar, talvez não tenha coragem de voltar, porque os atores não estarão chamando você como se fossem conhecidos largados à própria sorte.
Um dos problemas de um romance, a meu ver insolúvel, é a tradução. Por melhor que seja o tradutor, como é o caso deste livro, não há como evitar as aléias de pilriteiros e os poentes cor de abricó maduro. Parece que o doutor Caranguejo, Abóbora e o senhor Presidente fazem parte destas armadilhas da língua que transformam um livro americano sobre gueixas em "Reinações de Narizinho". Sem contar que a protagonista é a própria Emília, pois o autor se utiliza dela para suas melhores e mais atrevidas metáforas.
O livro flui com facilidade, tem suspense e maravilhosas descrições de quimonos. Mas começa a perder o fio e o pique a partir da Segunda Guerra até chegar à Nova York de pós-guerra.
De Nova York, Sayuri vai contar com sua própria voz, pelas palavras do autor, a sua história. Esse truque se fez necessário, pois o que o livro teria de melhor, que era a informação, o pano de fundo, só poderia ser explicado convincentemente a um ouvinte estrangeiro, que não fosse versado no tema.
E assim, nos Estados Unidos, Arthur Golden acabou o livro. A essas alturas já nos fala sobre Sayumi como se também fosse uma amiga distante. Já não a reconhece como seu personagem. O que me parece é que estouraram os prazos de entrega, e ele fechou sua primeira obra sem arredondá-la o bastante, sem refletir um pouco mais sobre seus personagens, sem costurar algumas situações.
O impacto do livro: best seller na hora. Revistas e jornais americanos e ingleses se derreteram sobre "Memórias de uma Gueixa".
"Um primeiro romance de aturdir, uma performance de tirar o fôlego..."
"Golden nos dá, não só o retrato rico e carinhoso de uma mulher, mas também o retrato observado de um grande universo anômalo e quase extinto. É uma estréia de peso e bastante incomum."
Outro jornal ou revista que perdi o comparou a Dickens.
Estão aí os críticos mais respeitados com seu consenso e só me resta enfiar a viola no saco. O que me intriga saber é o que diriam se topassem com um Flaubert? Morreriam de emoção, com certeza. O que pode ocasionar este desencontro da crítica com um leitor?
Acho que a idade é cínica, e que, com o correr de uma vida longa, perdemos os arroubos e a tolerância. Sobraram nas estantes só os Faulkner, Prousts, um Elliot aqui, outro acolá, Graciliano, Machado, Pedro Nava, algumas biografias, muitos livros sobre comida, bons. Por excesso de peso e ingratidão jogamos fora os namoros de adolescência, Pearl Buck, Lin Yutang, que tanto prazer nos deram e que corresponderiam a este livro.
Um avô, vendo as meninas de biquíni em Copacabana, nos novos tempos de Twiggy, dizia com um muxoxo -"Não têm por onde se lhes pegue...". Aos velhos é preciso dar peso, vitamina, e não novelas de amor para fazer o tempo passar mais depressa. O melhor é nos recolhermos à nossa insignificância, deixar que os críticos critiquem e continuar com as cartas de Virginia Woolf, "O Complexo de Portnoy", "O Evangelho Segundo São Matheus" e as bulas de remédios.

Livro: Memórias de uma Gueixa Autor: Arthur Golden Tradutora: Lya Luft Lançamento: Imago Preço: R$ 28 (459 págs.)


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.