São Paulo, segunda, 7 de abril de 1997.

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A Folha publica entrevista inédita com o poeta beat norte-americano morto anteontem
Ginsberg deixa luta pela própria espécie

EDUARDO SIMANTOB
da Publifolha

A morte de Allen Ginsberg, ocorrida anteontem, não deixa lacunas. Durante meio século o escritor americano dedicou-se não só a uma extensa obra poética, como também ao ensino da literatura como ato de liberdade e militância político-ambiental. E a mensagem já está dada.
Ginsberg escreveu bastante, falou mais ainda e participou combativamente das transformações da América do pós-Guerra.
Lutou contra a censura, combateu a proibição do LSD (1966), protestou contra a guerra do Vietnã, contra as armas nucleares e militou pela preservação da natureza.
Em 1994, Ginsberg foi procurado pela Folha para falar sobre o escritor William Burroughs, que na época completava 80 anos de idade.
A entrevista, inédita, acabou se estendendo à sua poesia, ativismo e ecologia. A seguir alguns trechos.

Folha - Como o senhor resumiria a importância de William Burroughs na literatura americana?
Allen Ginsberg -
Burroughs tem uma influência na cultura dominante americana muito maior do que ele mesmo imagina. Devido ao processo contra seu livro ``Almoço Nu'', ele abriu as portas da censura para que novos autores escrevessem o que quisessem.
Muitos dos seus temas continuam e continuarão importantes, como controle do pensamento, drogas, sexualidade gay, Estados policiais etc. Mesmo na cultura pop, bandas como Steely Dan e Soft Machine devem seus nomes a títulos de livros seus e, mais ainda, à técnica dos cut-ups (colagem de textos e imagens não tão ao acaso, desenvolvida por Burroughs e pelo pintor Brion Gysin nos anos 60).
Folha - E o senhor experimentou também os cut-ups?
Ginsberg -
Só no começo, mas essa técnica foi incorporada por vários escritores, como Dennis Cooper e Hunter Thompson, sem falar dos músicos. Os garotos do U2 outro dia vieram me mostrar um videoclipe (da turnê ``Zootour'') influenciados pelo cut-up.
Folha - Mas o cut-up não é uma técnica original, os dadaístas e surrealistas do início do século...
Ginsberg -
Sim, eles faziam algo que se chamava ``corpos estranhos''. Dois artistas trabalhavam numa mesma tela sem saber o que o outro fazia, depois juntavam tudo. Mas o cut-up não é um processo inconsciente, é uma forma de dar sentido a esse inconsciente.
Folha - O senhor trabalhava o cut-up na sua poesia?
Ginsberg -
Não exatamente. Eu também fotografo e desenho. Nas fotos eu escrevia notas sobre as coisas que estavam acontecendo quando foram tiradas. Ao juntá-las tenho toda uma história contada de um modo não usual.
Folha - Hoje os ``beats'' estão virando moda na América, a mídia dando às suas obras um espaço até hoje inédito. Isso é uma surpresa?
Ginsberg -
Não. Creio que a obra ``beat'' é tão forte que já pode ser tomada como referência literária. Nós tocamos em questões permanentes: o império americano, ecologia, revolução sexual, censura. Também há a questão do ``terceiro caminho'', nem comunismo nem capitalismo, que pregávamos enquanto os intelectuais procuravam extremos do marxismo ou do anticomunismo.
Nossa preocupação é alterar estados de consciência e achar soluções ecológicas, não ideológicas.
Folha - Mas isso também pode levar a interpretações variadas do que se diz ou escreve, não?
Ginsberg -
Meu negócio é poesia. Ao produzir não posso controlar o que as pessoas farão depois, dizer o que elas devem fazer com suas próprias mentes. E nem gostaria, eu seria um ditador. O melhor que posso fazer é propor alternativas e me abrir às pessoas que queiram aprender comigo.
Folha - E qual é sua principal preocupação hoje?
Ginsberg -
O problema básico é o da hipertecnologia consumindo o planeta numa escala que destruirá as possibilidades humanas. Li hoje uma entrevista de Jacques Cousteau (oceanógrafo francês) em que ele diz: ``Estou agora lutando pela minha própria espécie, buscando conceitos para as gerações futuras''. Para ele, o divórcio entre a humanidade e a natureza é irreversível, mas o homem deve se lembrar que ainda depende da natureza. Mas, como eu, ele tem esperança no futuro.
Folha - E há futuro na literatura americana?
Ginsberg -
Há um presente. Quem estiver escrevendo, em qualquer língua, está levando a literatura para frente, mas deve sempre se lembrar que a imortalidade só vem depois.

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