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MARCELO COELHO
Adultos infantis, mães de 14 anos e criminosos de 16
Será que foi uma alucinação?
Agora que estou escrevendo
este artigo, fico na dúvida. Era
domingo, aí pelas 11h da manhã,
um lindo dia. Eu estava de carro
na frente do parque Ibirapuera,
parado no sinal vermelho. Do alto-falante instalado em cima de
uma Kombi branca vinham sons
animados.
"Participe, minha gente! Vamos
todos participar!" Ou algo assim.
Música aeróbica, no gênero Daniela Mercury ou show da Xuxa.
Podia ser um sorteio do Baú da
Felicidade ou uma iniciativa para doação de agasalhos. Então reparei na faixa, com dizeres em
vermelho, que estava pendurada
na Kombi. Era uma campanha
pela redução da maioridade penal.
Não é que a idéia me escandalize muito. Um rapaz de 16 anos
que tenha cometido vários assassinatos não pode ficar em liberdade; é claramente eufemístico chamá-lo de "menor infrator". Só
que, entre uma unidade da Febem e a cadeia, não sei se a diferença é crucial. E não me sinto especialmente bom, tolerante e humano ao defender que só a partir
dos 18 anos alguém seja trancafiado num campo de concentração superlotado, onde será estuprado pelos colegas de cela depois
de sofrer tortura nas mãos da polícia para confessar crimes que
não cometeu.
Em todo caso, já tratei do assunto em outra ocasião. O que me
deixou incrédulo, naquele domingo de sol, foi o espírito de animação construtiva, de celebração
dançante com que se colhiam
adesões ao abaixo-assinado.
Talvez, como disse, eu estivesse
delirando. Alguém simplesmente
terá deixado o rádio da Kombi ligado entre um discurso e outro.
Não sei.
O fato é que, enquanto muita
gente quer a maioridade aos 16
anos, ocorre também o processo
inverso de uma crescente infantilização do mundo adulto. Tudo
vira gincana -até protesto da
CUT.
Tenho também achado incomum o número de marmanjos
que, no shopping, aparecem de
boné bordô e calça curta, comendo algodão-doce na fila do cinema, à espera do momento de ver
"Scooby Doo" com a namorada.
Não me refiro a adolescentes:
homens de 30, 40 anos submergem na inocência, na infância
eterna dos shoppings e playcenters. Passar a lua-de-mel na Disneylândia -e quem sabe as bodas de prata- já não é comportamento que provoque surpresa.
Um fenômeno relacionado com
tudo isso -e sem dúvida mais
preocupante- é o crescimento
dos casos de gravidez entre adolescentes no Brasil. Entre 1993 e
1997, por exemplo, houve um aumento de 20% nos partos em mulheres de dez a 14 anos atendidas
pelo SUS. As jovens de 15 a 19
anos são o único grupo, nos últimos dez anos, em que aumentou
a taxa de fecundidade.
Há números impressionantes
no livro "Juventudes e Sexualidade", de Mary Garcia Castro, Miriam Abramovay e Lorena Bernadete da Silva, recém-editado
pela Unesco, com apoio do governo federal. Fico mais uma vez em
estado de incredulidade.
No município de Fortaleza,
33,3% das jovens entre dez e 14
anos de idade dizem já ter engravidado. Em São Paulo, são 11,1%.
Será que alguém confundiu gravidez com menstruação? Leio e
releio a pesquisa (realizada com
mais de 16 mil alunos de ensino
básico e médio em 13 capitais brasileiras): é gravidez mesmo. Fortaleza é também a cidade onde
são mais baixos os índices de uso
da camisinha: 48,1%, contra
66,6% em São Paulo, por exemplo.
Quanto a aborto, entre as alunas do ginásio e colegial, Maceió e
Recife têm os maiores índices: cerca de 11% das entrevistadas já o
fizeram.
A pesquisa aborda muitas questões, como as atitudes dos jovens
com relação à virgindade, ao homossexualismo e à própria maternidade; investiga-se o grau de
informação e de conversa que
existe entre pais e jovens com relação a métodos contraceptivos e
em que situações estes deixam de
ser utilizados.
Pesquisas dessa abrangência e
detalhamento costumam ramificar-se em mais e mais problemas,
quase ao ponto de retornarem ao
específico, ao caso-a-caso, à circunstância empírica -é como se
a gente acabasse justamente voltando a tudo aquilo que a formulação estatística visava sintetizar.
Em todo caso, sem nenhuma
obrigação de ser científico, tento
aqui uma generalização improvisada. Quando penso nos adultos
que se infantilizam, nas mães de
14 anos e nos criminosos de 16,
minha inclinação é perguntar se
afinal de contas essas categorias
do século 20 -infância, adolescência, idade adulta- não estão
caindo em desuso hoje em dia.
A adolescência, pelo menos, não
é coisa que sempre tenha existido.
As primeiras páginas do livro de
Contardo Calligaris sobre o assunto, na coleção "Folha Explica", propõem uma rápida definição. Adolescente, sugere o autor
numa aproximação inicial, seria
alguém "1°- que teve tempo de assimilar os valores mais banais e
mais bem compartilhados na comunidade (por exemplo, e no
nosso caso: destaque pelo sucesso
financeiro/social e amoroso/sexual); 2°- cujo corpo chegou à maturação necessária para que ele
possa efetiva e eficazmente se
consagrar às tarefas que lhe são
apontadas por esses valores, competindo de igual para igual com
todo mundo; 3°- para quem, nesse
exato momento, a comunidade
impõe uma moratória".
Moratória, ou seja: o adolescente tem de esperar muitos e muitos
anos antes de começar a fazer tudo aquilo que ele já está em condição de fazer.
Tudo indica que, do amor à delinqüência, essa moratória está
desaparecendo. Em tese, a adolescência seria o tempo de estudar
até conseguir um emprego. Mas,
como o modelo atual de educação
está em crise terminal, e como essa crise só é menor do que a do
emprego, é esse prazo de moratória que já não tem sustentação
real.
Hoje, pode-se prolongar a adolescência até os 20, 25, 30 anos: a
expectativa de arranjar emprego
talvez não seja atendida jamais;
pode-se iniciar uma vida amorosa autêntica e intensa já aos 15
anos; pode-se ver Scooby-Doo
com qualquer idade. O que sobra,
então, desse fenômeno? Talvez tenha envelhecido bastante.
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