São Paulo, quarta-feira, 07 de abril de 2004

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MARCELO COELHO

Adultos infantis, mães de 14 anos e criminosos de 16

Será que foi uma alucinação? Agora que estou escrevendo este artigo, fico na dúvida. Era domingo, aí pelas 11h da manhã, um lindo dia. Eu estava de carro na frente do parque Ibirapuera, parado no sinal vermelho. Do alto-falante instalado em cima de uma Kombi branca vinham sons animados.
"Participe, minha gente! Vamos todos participar!" Ou algo assim. Música aeróbica, no gênero Daniela Mercury ou show da Xuxa. Podia ser um sorteio do Baú da Felicidade ou uma iniciativa para doação de agasalhos. Então reparei na faixa, com dizeres em vermelho, que estava pendurada na Kombi. Era uma campanha pela redução da maioridade penal.
Não é que a idéia me escandalize muito. Um rapaz de 16 anos que tenha cometido vários assassinatos não pode ficar em liberdade; é claramente eufemístico chamá-lo de "menor infrator". Só que, entre uma unidade da Febem e a cadeia, não sei se a diferença é crucial. E não me sinto especialmente bom, tolerante e humano ao defender que só a partir dos 18 anos alguém seja trancafiado num campo de concentração superlotado, onde será estuprado pelos colegas de cela depois de sofrer tortura nas mãos da polícia para confessar crimes que não cometeu.
Em todo caso, já tratei do assunto em outra ocasião. O que me deixou incrédulo, naquele domingo de sol, foi o espírito de animação construtiva, de celebração dançante com que se colhiam adesões ao abaixo-assinado.
Talvez, como disse, eu estivesse delirando. Alguém simplesmente terá deixado o rádio da Kombi ligado entre um discurso e outro. Não sei.
O fato é que, enquanto muita gente quer a maioridade aos 16 anos, ocorre também o processo inverso de uma crescente infantilização do mundo adulto. Tudo vira gincana -até protesto da CUT.
Tenho também achado incomum o número de marmanjos que, no shopping, aparecem de boné bordô e calça curta, comendo algodão-doce na fila do cinema, à espera do momento de ver "Scooby Doo" com a namorada.
Não me refiro a adolescentes: homens de 30, 40 anos submergem na inocência, na infância eterna dos shoppings e playcenters. Passar a lua-de-mel na Disneylândia -e quem sabe as bodas de prata- já não é comportamento que provoque surpresa.
Um fenômeno relacionado com tudo isso -e sem dúvida mais preocupante- é o crescimento dos casos de gravidez entre adolescentes no Brasil. Entre 1993 e 1997, por exemplo, houve um aumento de 20% nos partos em mulheres de dez a 14 anos atendidas pelo SUS. As jovens de 15 a 19 anos são o único grupo, nos últimos dez anos, em que aumentou a taxa de fecundidade.
Há números impressionantes no livro "Juventudes e Sexualidade", de Mary Garcia Castro, Miriam Abramovay e Lorena Bernadete da Silva, recém-editado pela Unesco, com apoio do governo federal. Fico mais uma vez em estado de incredulidade.
No município de Fortaleza, 33,3% das jovens entre dez e 14 anos de idade dizem já ter engravidado. Em São Paulo, são 11,1%. Será que alguém confundiu gravidez com menstruação? Leio e releio a pesquisa (realizada com mais de 16 mil alunos de ensino básico e médio em 13 capitais brasileiras): é gravidez mesmo. Fortaleza é também a cidade onde são mais baixos os índices de uso da camisinha: 48,1%, contra 66,6% em São Paulo, por exemplo.
Quanto a aborto, entre as alunas do ginásio e colegial, Maceió e Recife têm os maiores índices: cerca de 11% das entrevistadas já o fizeram.
A pesquisa aborda muitas questões, como as atitudes dos jovens com relação à virgindade, ao homossexualismo e à própria maternidade; investiga-se o grau de informação e de conversa que existe entre pais e jovens com relação a métodos contraceptivos e em que situações estes deixam de ser utilizados.
Pesquisas dessa abrangência e detalhamento costumam ramificar-se em mais e mais problemas, quase ao ponto de retornarem ao específico, ao caso-a-caso, à circunstância empírica -é como se a gente acabasse justamente voltando a tudo aquilo que a formulação estatística visava sintetizar.
Em todo caso, sem nenhuma obrigação de ser científico, tento aqui uma generalização improvisada. Quando penso nos adultos que se infantilizam, nas mães de 14 anos e nos criminosos de 16, minha inclinação é perguntar se afinal de contas essas categorias do século 20 -infância, adolescência, idade adulta- não estão caindo em desuso hoje em dia.
A adolescência, pelo menos, não é coisa que sempre tenha existido. As primeiras páginas do livro de Contardo Calligaris sobre o assunto, na coleção "Folha Explica", propõem uma rápida definição. Adolescente, sugere o autor numa aproximação inicial, seria alguém "1°- que teve tempo de assimilar os valores mais banais e mais bem compartilhados na comunidade (por exemplo, e no nosso caso: destaque pelo sucesso financeiro/social e amoroso/sexual); 2°- cujo corpo chegou à maturação necessária para que ele possa efetiva e eficazmente se consagrar às tarefas que lhe são apontadas por esses valores, competindo de igual para igual com todo mundo; 3°- para quem, nesse exato momento, a comunidade impõe uma moratória".
Moratória, ou seja: o adolescente tem de esperar muitos e muitos anos antes de começar a fazer tudo aquilo que ele já está em condição de fazer.
Tudo indica que, do amor à delinqüência, essa moratória está desaparecendo. Em tese, a adolescência seria o tempo de estudar até conseguir um emprego. Mas, como o modelo atual de educação está em crise terminal, e como essa crise só é menor do que a do emprego, é esse prazo de moratória que já não tem sustentação real.
Hoje, pode-se prolongar a adolescência até os 20, 25, 30 anos: a expectativa de arranjar emprego talvez não seja atendida jamais; pode-se iniciar uma vida amorosa autêntica e intensa já aos 15 anos; pode-se ver Scooby-Doo com qualquer idade. O que sobra, então, desse fenômeno? Talvez tenha envelhecido bastante.


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