São Paulo, sábado, 07 de abril de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

O Fausto pândego

Fausto é indissociável de Goethe, mas peça de Marlowe é versão mais fiel da lenda do pacto com Mefistófeles

O NOME Fausto é indissociável da tragédia de Goethe. Entretanto, a versão do poeta alemão para a lenda do sábio que vende a alma a Mefistófeles, em troca de poderes ilimitados, é a deformação genial de um enredo cujo modelo continua sendo "A Histórica Trágica do Doutor Fausto", peça escrita por Christopher Marlowe no final do século 16.
Bem entendido, é com Goethe que Fausto se transforma num mito literário reelaborado por autores como Fernando Pessoa, Valéry, Bulgakov ou Thomas Mann. Neles, porém, o pacto com o demônio é menos heresia do que uma metáfora na qual a afronta teológica serve de mote para o desejo moderno de emancipação em relação a Deus.
Essa sagração do sujeito, da criatura revoltada contra a onipotência do criador, encontra seu apogeu ao término da segunda parte do "Fausto" goethiano (que, aliás, acaba de ser relançada pela Editora 34, numa versão anotada da tradução de Jenny Klabin Segall).
A confiança de Goethe nos encantos demiúrgicos de sua poesia conduz a um epílogo em que Fausto burla Mefistófeles e é conduzido por vozes celestes ao beatífico Céu Empíreo (numa alusão à "Divina Comédia" de Dante, que com igual modéstia narra sua chegada ao Paraíso).
Com Marlowe, estamos na ante-sala dessa mitificação. Fiel à lenda de Fausto, esse poeta que em seu tempo rivalizava com Shakespeare deu forma teatral às crônicas sobre Johann Georg Faust, praticante de magia negra que viveu entre 1480 e 1540 e cujos feitos são citados por Lutero e Melanchton.
Muito se especula sobre o sentido do Fausto marloviano. Para alguns intérpretes, ele confirma o fim inevitável de quem cede à tentação demoníaca, dentro do espírito das "Morality Plays", as peças morais do teatro inglês. Para os adeptos do diabolismo de Marlowe, trata-se da ambição renascentista de controlar a natureza -busca que, numa sociedade puritana, estaria fadada à danação também no plano político (tese reforçada pelas circunstâncias obscuras da morte do dramaturgo, assassinado numa taberna após jantar com espiões da rainha).
Teologia e política à parte, o leitor contemporâneo de Marlowe também poderá ver nessa edição (que recupera tradução portuguesa dos anos 50) um Fausto pândego. Ele viaja pela Europa à cata de prazer e glória, satiriza a corte do Papa ("Grande tropa vais ver de frades calvos,/ Pra os quais a pança cheia é "summum bonum'", diz-lhe Mefistófeles), define os dogmas como contos da carochinha e espera que o demo satisfaça seus apetites carnais: "Pois que lascivo sou e libertino.../ Eu sem mulher é que não sei viver".
A tragédia começa com o tédio diante das limitações humanas e termina com a punição da soberba.
Entre um ponto e outro, Marlowe nos oferece algo que falta às outras versões do mito: humor e deboche.


A HISTÓRICA TRÁGICA DO DOUTOR FAUSTO
Autor:
Christopher Marlowe
Tradução: A. de Oliveira Cabral
Editora: Hedra
Quanto: R$ 18 (128 págs.)
Avaliação: ótimo


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