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MANUEL DA COSTA PINTO
O Fausto pândego
Fausto é indissociável de Goethe, mas peça de Marlowe é versão mais fiel da lenda do pacto com Mefistófeles
O NOME Fausto é indissociável
da tragédia de Goethe. Entretanto, a versão do poeta
alemão para a lenda do sábio que
vende a alma a Mefistófeles, em troca de poderes ilimitados, é a deformação genial de um enredo cujo
modelo continua sendo "A Histórica
Trágica do Doutor Fausto", peça escrita por Christopher Marlowe no
final do século 16.
Bem entendido, é com Goethe que
Fausto se transforma num mito literário reelaborado por autores como
Fernando Pessoa, Valéry, Bulgakov
ou Thomas Mann. Neles, porém, o
pacto com o demônio é menos heresia do que uma metáfora na qual a
afronta teológica serve de mote para
o desejo moderno de emancipação
em relação a Deus.
Essa sagração do sujeito, da criatura revoltada contra a onipotência
do criador, encontra seu apogeu ao
término da segunda parte do "Fausto" goethiano (que, aliás, acaba de
ser relançada pela Editora 34, numa
versão anotada da tradução de
Jenny Klabin Segall).
A confiança de Goethe nos encantos demiúrgicos de sua poesia conduz a um epílogo em que Fausto
burla Mefistófeles e é conduzido por
vozes celestes ao beatífico Céu Empíreo (numa alusão à "Divina Comédia" de Dante, que com igual modéstia narra sua chegada ao Paraíso).
Com Marlowe, estamos na ante-sala dessa mitificação. Fiel à lenda
de Fausto, esse poeta que em seu
tempo rivalizava com Shakespeare
deu forma teatral às crônicas sobre
Johann Georg Faust, praticante de
magia negra que viveu entre 1480 e
1540 e cujos feitos são citados por
Lutero e Melanchton.
Muito se especula sobre o sentido
do Fausto marloviano. Para alguns
intérpretes, ele confirma o fim inevitável de quem cede à tentação demoníaca, dentro do espírito das
"Morality Plays", as peças morais do
teatro inglês. Para os adeptos do diabolismo de Marlowe, trata-se da
ambição renascentista de controlar
a natureza -busca que, numa sociedade puritana, estaria fadada à danação também no plano político (tese reforçada pelas circunstâncias
obscuras da morte do dramaturgo,
assassinado numa taberna após jantar com espiões da rainha).
Teologia e política à parte, o leitor
contemporâneo de Marlowe também poderá ver nessa edição (que
recupera tradução portuguesa dos
anos 50) um Fausto pândego. Ele
viaja pela Europa à cata de prazer e
glória, satiriza a corte do Papa
("Grande tropa vais ver de frades
calvos,/ Pra os quais a pança cheia é
"summum bonum'", diz-lhe Mefistófeles), define os dogmas como
contos da carochinha e espera que o
demo satisfaça seus apetites carnais:
"Pois que lascivo sou e libertino.../
Eu sem mulher é que não sei viver".
A tragédia começa com o tédio
diante das limitações humanas e
termina com a punição da soberba.
Entre um ponto e outro, Marlowe
nos oferece algo que falta às outras
versões do mito: humor e deboche.
A HISTÓRICA TRÁGICA DO DOUTOR FAUSTO
Autor: Christopher Marlowe
Tradução: A. de Oliveira Cabral
Editora: Hedra
Quanto: R$ 18 (128 págs.)
Avaliação: ótimo
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