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Livros
Crítica/romance
Paula Fox sintetiza realismo americano
"Desesperados" é ambientado em 1968 e traz marcas de boa parte da literatura dos EUA, de Hemingway aos grandes dramaturgos
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma síntese do realismo
americano da segunda
metade do século 20:
objetividade cortante, lapidada
em frases curtas e pontos de
vista desencontrados, um intimismo em voz alta tentando
achar seu lugar antes no espaço
que na alma, sempre exasperantemente vazia -eis um modo de definir a literatura de
Paula Fox. Aos 83 anos, autora
de romances escritos entre
1967 e 1990, ela está sendo redescoberta, e a julgar por "Desesperados", lançado agora no
Brasil, perdemos muito em não
conhecê-la antes.
É surpreendente a atualidade desta narrativa que se passa
praticamente em três dias de
1968 e que parece ter sido escrita nesta manhã. São páginas
econômicas, controladas por
um narrador atento, mas frio,
que acompanha o cotidiano
desgastado de um casal sem filhos, sempre pelos olhos da
mulher, Sophie.
Ela é uma tradutora; ele, Otto, um advogado que está se separando do sócio de muitos
anos. Ambos vivem uma espécie mal formulada de "fim de
caminho", e no olhar de Sophie
sentimos aquele desejo brutal
de não mentir que é parte inseparável do puritanismo americano, ao mesmo tempo que a
realidade vai destruindo todos
os sonhos de pureza.
Imaginário americano
O gancho narrativo é uma
metáfora de certo imaginário
da cultura americana -tentando agradar um gatinho dando-lhe leite, Sophie é mordida por
ele, e a injustiça metafísica parece explicar a sua vida inteira.
Há uma persistente corrosão
do espaço em que vivem - bêbados e vômitos nas calçadas,
pedras nas janelas, pobreza
agressiva, a crescente presença
dos negros e o sentimento azedo de culpa da elite branca.
Vive-se a percepção ambígua
de que o ideário da liberdade
(estamos em 1968) está saindo
do controle: a casa de campo é
depredada sob o olhar complacente do caseiro, sente-se a degradação do espaço público e o
pudor de expressar o medo,
quase como se eles estivessem
"tendo o que merecem". Num
momento, Otto confessa: "Gostaria que alguém me dissesse
como viver". O retrospecto que
Sophie faz de sua vida é angustiantemente seco, em que
emergem, como pontas agudas,
um amante avulso e uma mãe
com quem não consegue conversar; e o cotidiano com o marido é um escorrer de mentiras
tensas com pequenos e limitados golpes de verdade.
Na linguagem de Paula Fox
encontramos marcas recorrentes de boa parte da literatura
norte-americana, da frase enxuta de Hemingway (aqui desprovida de sentimentalismo) à
tensão do texto de seus grandes
dramaturgos. Em alguns momentos, ouvimos ecos do humor de Dorothy Parker ("o
meu conhecimento não é páreo
para a ignorância dele"), e em
outros quase entramos num filme de Woody Allen, assistindo
ao tédio da classe média letrada
querendo fazer o bem. Esses
"estilos de época", entretanto,
vão sendo soterrados por uma
nitidez narrativa única, que,
sem remissão nem má poesia,
tira a esperança das nuvens, da
vida social, do Estado ou de
Deus, e coloca-a na medida curta dos nossos passos.
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor, entre outros, do romance "O Fotógrafo" (Rocco).
DESESPERADOS
Autor: Paula Fox
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35,50 (192 págs.)
Avaliação: ótimo
Leia a introdução de Jonathan Franzen e trecho do livro
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