São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Crime e liberdade


Ao se envolverem no caso da morte de Isabella, as pessoas se mostram livres e responsáveis

UMA garotinha de cinco anos morre de modo suspeito e, se não o país, pelo menos toda uma cidade maior que muitos países se envolve; jornais, revistas e TV mal falam de outro assunto; gente estranha se comove ou se enraivece a ponto de ir à sua missa de sétimo dia ou esperar, diante da delegacia, a chegada dos suspeitos.
Se as piores suspeitas se mostrarem infundadas, dois inocentes passarão o resto de seus dias tentando limpar as respectivas reputações. Caso se confirmem, porém, estaremos perante um crime que, para a média das pessoas, é dos mais repelentes que existem, a saber, o assassinato de uma criança indefesa pelos adultos aos quais cabia zelar por seu bem-estar.
Crianças continuam, é claro, morrendo diariamente ao redor do planeta, seja de doenças para as quais não faltam prevenção e cura, seja devido à subnutrição ou por causa de acidentes. Mortes assim quase nunca desencadeiam tamanha comoção, algo que não advém, portanto, apenas da extrema precocidade do fim. Dois elementos ajudam a entender essa explosão emocional.
O primeiro é a proximidade. Por mais que os espíritos humanitários a julguem indigesta, a verdade é que uma morte na China nos dói menos que uma no Brasil, esta nos toca menos que uma no Estado, na cidade de São Paulo, no nosso bairro, condomínio e assim por diante, até chegar, mais pungente, ao interior de nossa família. O mesmo se aplica a grupos étnicos, religiosos, profissionais e a classes sociais. É provável que quem professe o amor fraterno universal lide com seus irmãos como se fossem cifras. O segundo elemento é a intencionalidade que, se provada, configuraria o caráter criminoso da morte.
Houve gente que, achando excessivo o número, indignou-se ao ler que um em cada cem americanos adultos está na prisão. Mas, considerando que, por um lado, os EUA, onde vigora o império da lei (rule of law), punem apenas transgressões consideradas criminosas em qualquer nação civilizada, sem cair, como muitas, na barbárie de criminalizar diferenças políticas, religiosas ou comportamentais, e, por outro, também não chegam, como os europeus, à leniência de privilegiar os supostos direitos de uma minoria de predadores em detrimento da segurança da maioria decente, pode-se concluir que sua taxa de criminalidade se aproxima da que se espera em sociedades abertas.
Qual seria assim a razão para que a maioria, embora disposta a aceitar resignada tantas mortes por doença ou acidentes mortais como obra do destino, revolte-se diante de uma única, desde que perpetrada por mãos humanas? Os recursos empregados na prevenção ou, menos útil ainda, na punição de um único assassinato poderiam, desde que investidos, digamos, em saneamento urbano ou em estradas melhores, salvar dezenas ou, quem sabe, centenas de vidas. O cálculo racional não dá lugar a dúvidas: conviria abordar os crimes de sangue como o fenômeno relativamente raro e dificilmente eliminável que são. Elas por elas, não seria melhor encará-los desapaixonada e estoicamente?
A não ser que se creia que são os meios de comunicação que, oportunistas, manipulam os sentimentos das massas, resta somente concluir que, como o que sucede é o contrário, ou seja, são aqueles que, obedecendo às demandas do mercado, fornecem aos consumidores as informações requeridas, então o que se lê nas manchetes reflete fielmente as ansiedades dos leitores. Estes se interessam e sempre se interessarão por crimes, em especial pelos hediondos. E não por uma curiosidade macabra, pois o que querem acompanhar, do começo ao fim, é o espetáculo da justiça.
Esse ritual importa porque, ao contrário dos ultraliberais que, culpando a sociedade, negam a responsabilidade individual, a maioria quer ver suas conseqüências postas em prática. Onde os indivíduos não são responsáveis por seus atos nem têm de responder por seus crimes, não são livres de verdade. Caso não haja punição porque a culpa individual inexiste, tampouco existe a liberdade de não cometer o crime, e tudo é sobredeterminado pelos "outros".
Na falta da autonomia individual, tudo o que há é a coletividade indiferenciada e indiferente, e o crime se torna uma "moléstia" social à espera de curas milagrosas que vão da redistribuição da renda à construção de escolas. Ao se envolverem passional e moralmente com a morte da pequena Isabella Nardoni, os cidadãos estão dando a entender que, desdenhosos da demagogia que procura lhes vender mais Estado, eles querem mesmo é que a Justiça trate seus concidadãos como o que são: pessoas livres e responsáveis pelos próprios atos.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Música: Sapoty prepara temporada no Bar B
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.