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NELSON ASCHER
Crime e liberdade
Ao se envolverem no caso da morte de Isabella, as pessoas se mostram livres e responsáveis
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UMA garotinha de cinco anos
morre de modo suspeito e, se
não o país, pelo menos toda
uma cidade maior que muitos países
se envolve; jornais, revistas e TV mal
falam de outro assunto; gente estranha se comove ou se enraivece a
ponto de ir à sua missa de sétimo dia
ou esperar, diante da delegacia, a
chegada dos suspeitos.
Se as piores suspeitas se mostrarem infundadas, dois inocentes passarão o resto de seus dias tentando
limpar as respectivas reputações.
Caso se confirmem, porém, estaremos perante um crime que, para a
média das pessoas, é dos mais repelentes que existem, a saber, o assassinato de uma criança indefesa pelos
adultos aos quais cabia zelar por seu
bem-estar.
Crianças continuam, é claro, morrendo diariamente ao redor do planeta, seja de doenças para as quais
não faltam prevenção e cura, seja
devido à subnutrição ou por causa
de acidentes. Mortes assim quase
nunca desencadeiam tamanha comoção, algo que não advém, portanto, apenas da extrema precocidade
do fim. Dois elementos ajudam a entender essa explosão emocional.
O primeiro é a proximidade. Por
mais que os espíritos humanitários a
julguem indigesta, a verdade é que
uma morte na China nos dói menos
que uma no Brasil, esta nos toca menos que uma no Estado, na cidade de
São Paulo, no nosso bairro, condomínio e assim por diante, até chegar,
mais pungente, ao interior de nossa
família. O mesmo se aplica a grupos
étnicos, religiosos, profissionais e a
classes sociais. É provável que quem
professe o amor fraterno universal
lide com seus irmãos como se fossem cifras. O segundo elemento é a
intencionalidade que, se provada,
configuraria o caráter criminoso da
morte.
Houve gente que, achando excessivo o número, indignou-se ao ler
que um em cada cem americanos
adultos está na prisão. Mas, considerando que, por um lado, os EUA, onde vigora o império da lei (rule of law), punem apenas transgressões
consideradas criminosas em qualquer nação civilizada, sem cair, como muitas, na barbárie de criminalizar diferenças políticas, religiosas
ou comportamentais, e, por outro,
também não chegam, como os europeus, à leniência de privilegiar os supostos direitos de uma minoria de
predadores em detrimento da segurança da maioria decente, pode-se
concluir que sua taxa de criminalidade se aproxima da que se espera
em sociedades abertas.
Qual seria assim a razão para que a
maioria, embora disposta a aceitar
resignada tantas mortes por doença
ou acidentes mortais como obra do
destino, revolte-se diante de uma
única, desde que perpetrada por
mãos humanas? Os recursos empregados na prevenção ou, menos útil
ainda, na punição de um único assassinato poderiam, desde que investidos, digamos, em saneamento
urbano ou em estradas melhores,
salvar dezenas ou, quem sabe, centenas de vidas. O cálculo racional
não dá lugar a dúvidas: conviria
abordar os crimes de sangue como o
fenômeno relativamente raro e dificilmente eliminável que são. Elas
por elas, não seria melhor encará-los desapaixonada e estoicamente?
A não ser que se creia que são os
meios de comunicação que, oportunistas, manipulam os sentimentos
das massas, resta somente concluir
que, como o que sucede é o contrário, ou seja, são aqueles que, obedecendo às demandas do mercado, fornecem aos consumidores as informações requeridas, então o que se lê
nas manchetes reflete fielmente as
ansiedades dos leitores. Estes se interessam e sempre se interessarão
por crimes, em especial pelos hediondos. E não por uma curiosidade
macabra, pois o que querem acompanhar, do começo ao fim, é o espetáculo da justiça.
Esse ritual importa porque, ao
contrário dos ultraliberais que, culpando a sociedade, negam a responsabilidade individual, a maioria quer ver suas conseqüências postas em
prática. Onde os indivíduos não são
responsáveis por seus atos nem têm
de responder por seus crimes, não
são livres de verdade. Caso não haja
punição porque a culpa individual
inexiste, tampouco existe a liberdade de não cometer o crime, e tudo é
sobredeterminado pelos "outros".
Na falta da autonomia individual,
tudo o que há é a coletividade indiferenciada e indiferente, e o crime se
torna uma "moléstia" social à espera
de curas milagrosas que vão da redistribuição da renda à construção
de escolas. Ao se envolverem passional e moralmente com a morte da
pequena Isabella Nardoni, os cidadãos estão dando a entender que,
desdenhosos da demagogia que procura lhes vender mais Estado, eles
querem mesmo é que a Justiça trate
seus concidadãos como o que são:
pessoas livres e responsáveis pelos
próprios atos.
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