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ANÁLISE
Exercício literário de persuasão marca terceira fase da obra do escritor, iniciada com o livro "A Confraria dos Espadas"
Rubem Fonseca "processa" o senso comum
SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A terceira e mais recente
fase da obra de ficção de Rubem Fonseca, iniciada com o livro
"A Confraria dos Espadas"
(1998), vive de deliciosos, arrebicados, injuriosos, luxuriosos e libidinosos nonsenses. A organização retórica da prosa ficcional, tal
como entregue a nós pela tradição
literária, perde os seus atributos
de narradora de fatos e criadora
de personagens. Transforma-se
num exercício literário contraditoriamente persuasivo e aparentemente gratuito, erudito e disparatado. A persuasão tem um fim
preciso. Visa a processar (tanto
no sentido informático quanto no
sentido jurídico do verbo) o senso
comum vitorioso, que passou a
ser moeda corrente no século 20,
depois das duas grandes guerras.
Processar o senso comum, o
consenso, é, nas palavras do personagem de nome Julieta, "ser
contra todos e ser contra todos é
uma forma astuta de não ser contra ninguém". Na fórmula mágica
evidenciam-se o niilismo e o reconhecimento de que universo e ser
humano estão se desprovendo de
significado a passos de gigante, e
isso apesar do amontoado de significações que se assenhoreiam
mais e mais dos livros para dizer
nada, quase nada, ou seja, para
alimentar uma derradeira fala humana, tão destemperada quanto a
dos romances de Samuel Beckett.
As tramas do nonsense são fatídicas, como no conto "Livre Arbítrio", que abre a citada coleção.
Ou ainda como está na confraria
de espadas, cujo ideal masculino
seria o do "múltiplo orgasmo sem
ejaculação" (mose). Tendo chegado a ele, o ser humano se torna de
tal forma inumano que o "desejo"
final do personagem é o de "na vida voltar a ser um macaco".
Haveria razão para Rubem Fonseca ir dando fim à sua obra pela
paródia das chamadas grandes
causas, de que o "mose" é bom
exemplo? Aliás, melhor exemplo
de paródia do senso comum seria
o dramatizado no conto "Anjos
das Marquises". O narrador, viúvo e desconsolado, sem causas na
vida, descobre com admiração os
enfermeiros do bem, que saem à
noite em ajuda dos miseráveis
que se abrigam nos passeios públicos. Graças ao generoso préstimo dos anjos, reganhariam o respeito e a dignidade. Ledo engano.
A cada madrugada os mendigos
ganham de presente uma morte
mais rápida e indolor. Os anjos
das marquises, na verdade cafetões da medicina moderna, levam
os necessitados para um abrigo
beneficente, na verdade um matadouro, a fim de transformá-los
em esmoleres. Abrem os corpos
dos miseráveis para que "doem"
generosamente os órgãos a quem,
nos grandes hospitais, os médicos
julgarem necessitados.
A paródia da grande causa, a da
causa da "necessidade", tem sua
fonte em Engels: "A liberdade é o
conhecimento da necessidade".
Não por coincidência esta frase é
epígrafe do romance "Seara Vermelha" (1950), do mestre modernista das grandes causas no século
20, Jorge Amado. Coube à geração de Fonseca e às dos seus pósteros viver o século 20 pela sua
metade podre -a que sofreu as
conseqüências de dois fornos crematórios. O de Auschwitz e o de
Hiroshima. O do mal e o do bem.
O da derrota nazista e o da vitória
aliada. Indistintamente. Essa descoberta está desde a primeira fase
da prosa de Fonseca, a dos livros
de contos, de "Os Prisioneiros"
(1963) a "Feliz Ano Novo" (1975).
Lá está, no entanto, sob uma forma delirantemente individualista.
A melhor tradução da velha forma seria o dito de Joaquim Pedro
de Andrade, "Cada um por si e
Deus contra todos", apropriado
pelo cineasta Jean-Luc Godard,
da preferência, como se sabe, do
autor de "Lucia McCartney"
(1967). A expressão de Joaquim
Pedro, também um processo
(apenas no sentido jurídico do
termo) contra o senso comum,
ganhava alento na "força humana", para retomar um dos títulos
de Fonseca, em luta contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha).
Naquela fase, a ficção do autor levava a sério a retórica tradicional,
onde sujeitos (personagens) são
constituídos e fatos são narrados.
Cada um por si. Fonseca se tornava o grande mestre do conto brasileiro contemporâneo. Nos contos, a força humana processava
não só o senso comum que representa Deus como também todos
os outros consensos que se vestem de maiúsculas, como a Sociedade, a História (no caso, sinônimo de Ditadura), a Economia etc.
Se ao processo contra o senso
comum representado por essas
maiúsculas se somar o processo
contra o bom senso que está significando, sob a forma de nonsense, o saber humano na segunda
metade do século 20, aproxima-nos dos romances de Fonseca,
que constituem a segunda fase da
sua ficção (com dois deslizes biográficos em "Agosto", 1990, e "O
Selvagem da Opera", 1994). Nos
romances que vão de "A Grande
Arte" (1983) a "Vastas Emoções e
Pensamentos Imperfeitos"
(1988), o requinte, a aspereza e a
depreciação no manuseio do saber armazenado pelas enciclopédias, pelos tratados das ciências
exatas e humanas, asseguram certa soberania para o trato da erudição na terceira fase, em que o ficcionista acossado se sai com coragem e brilhantismo invulgares.
Ou seja, com deliciosos, arrebicados, injuriosos, luxuriosos e libidinosos nonsenses.
A geração de Fonseca e a dos
pósteros vieram à luz em dois fornos crematórios. O que esperar de
nós, a não ser a derrisão pela ciência? "Sim, eu também me tornei
um monstro e meu único desejo
na vida é voltar a ser um macaco."
Silviano Santiago é escritor, poeta e
crítico, autor de, entre outros, "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)
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