São Paulo, sábado, 07 de maio de 2005

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ANÁLISE

Exercício literário de persuasão marca terceira fase da obra do escritor, iniciada com o livro "A Confraria dos Espadas"

Rubem Fonseca "processa" o senso comum

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A terceira e mais recente fase da obra de ficção de Rubem Fonseca, iniciada com o livro "A Confraria dos Espadas" (1998), vive de deliciosos, arrebicados, injuriosos, luxuriosos e libidinosos nonsenses. A organização retórica da prosa ficcional, tal como entregue a nós pela tradição literária, perde os seus atributos de narradora de fatos e criadora de personagens. Transforma-se num exercício literário contraditoriamente persuasivo e aparentemente gratuito, erudito e disparatado. A persuasão tem um fim preciso. Visa a processar (tanto no sentido informático quanto no sentido jurídico do verbo) o senso comum vitorioso, que passou a ser moeda corrente no século 20, depois das duas grandes guerras.
Processar o senso comum, o consenso, é, nas palavras do personagem de nome Julieta, "ser contra todos e ser contra todos é uma forma astuta de não ser contra ninguém". Na fórmula mágica evidenciam-se o niilismo e o reconhecimento de que universo e ser humano estão se desprovendo de significado a passos de gigante, e isso apesar do amontoado de significações que se assenhoreiam mais e mais dos livros para dizer nada, quase nada, ou seja, para alimentar uma derradeira fala humana, tão destemperada quanto a dos romances de Samuel Beckett. As tramas do nonsense são fatídicas, como no conto "Livre Arbítrio", que abre a citada coleção. Ou ainda como está na confraria de espadas, cujo ideal masculino seria o do "múltiplo orgasmo sem ejaculação" (mose). Tendo chegado a ele, o ser humano se torna de tal forma inumano que o "desejo" final do personagem é o de "na vida voltar a ser um macaco".
Haveria razão para Rubem Fonseca ir dando fim à sua obra pela paródia das chamadas grandes causas, de que o "mose" é bom exemplo? Aliás, melhor exemplo de paródia do senso comum seria o dramatizado no conto "Anjos das Marquises". O narrador, viúvo e desconsolado, sem causas na vida, descobre com admiração os enfermeiros do bem, que saem à noite em ajuda dos miseráveis que se abrigam nos passeios públicos. Graças ao generoso préstimo dos anjos, reganhariam o respeito e a dignidade. Ledo engano. A cada madrugada os mendigos ganham de presente uma morte mais rápida e indolor. Os anjos das marquises, na verdade cafetões da medicina moderna, levam os necessitados para um abrigo beneficente, na verdade um matadouro, a fim de transformá-los em esmoleres. Abrem os corpos dos miseráveis para que "doem" generosamente os órgãos a quem, nos grandes hospitais, os médicos julgarem necessitados.
A paródia da grande causa, a da causa da "necessidade", tem sua fonte em Engels: "A liberdade é o conhecimento da necessidade". Não por coincidência esta frase é epígrafe do romance "Seara Vermelha" (1950), do mestre modernista das grandes causas no século 20, Jorge Amado. Coube à geração de Fonseca e às dos seus pósteros viver o século 20 pela sua metade podre -a que sofreu as conseqüências de dois fornos crematórios. O de Auschwitz e o de Hiroshima. O do mal e o do bem. O da derrota nazista e o da vitória aliada. Indistintamente. Essa descoberta está desde a primeira fase da prosa de Fonseca, a dos livros de contos, de "Os Prisioneiros" (1963) a "Feliz Ano Novo" (1975). Lá está, no entanto, sob uma forma delirantemente individualista.
A melhor tradução da velha forma seria o dito de Joaquim Pedro de Andrade, "Cada um por si e Deus contra todos", apropriado pelo cineasta Jean-Luc Godard, da preferência, como se sabe, do autor de "Lucia McCartney" (1967). A expressão de Joaquim Pedro, também um processo (apenas no sentido jurídico do termo) contra o senso comum, ganhava alento na "força humana", para retomar um dos títulos de Fonseca, em luta contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha). Naquela fase, a ficção do autor levava a sério a retórica tradicional, onde sujeitos (personagens) são constituídos e fatos são narrados. Cada um por si. Fonseca se tornava o grande mestre do conto brasileiro contemporâneo. Nos contos, a força humana processava não só o senso comum que representa Deus como também todos os outros consensos que se vestem de maiúsculas, como a Sociedade, a História (no caso, sinônimo de Ditadura), a Economia etc.
Se ao processo contra o senso comum representado por essas maiúsculas se somar o processo contra o bom senso que está significando, sob a forma de nonsense, o saber humano na segunda metade do século 20, aproxima-nos dos romances de Fonseca, que constituem a segunda fase da sua ficção (com dois deslizes biográficos em "Agosto", 1990, e "O Selvagem da Opera", 1994). Nos romances que vão de "A Grande Arte" (1983) a "Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos" (1988), o requinte, a aspereza e a depreciação no manuseio do saber armazenado pelas enciclopédias, pelos tratados das ciências exatas e humanas, asseguram certa soberania para o trato da erudição na terceira fase, em que o ficcionista acossado se sai com coragem e brilhantismo invulgares. Ou seja, com deliciosos, arrebicados, injuriosos, luxuriosos e libidinosos nonsenses.
A geração de Fonseca e a dos pósteros vieram à luz em dois fornos crematórios. O que esperar de nós, a não ser a derrisão pela ciência? "Sim, eu também me tornei um monstro e meu único desejo na vida é voltar a ser um macaco."


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco)


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