São Paulo, quarta-feira, 07 de junho de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

É a ideologia, estúpido!

FILME DE terror: em 1996, os talebans conquistavam Cabul. Mas o pior veio a seguir: depois de preso, o antigo presidente Najibullah, o homem foi torturado e morto com requintes de malvadez.
Tradução: testículos cortados, dinheiro enfiado nos seus bolsos e cigarros entre os dedos. O corpo assim ficou, pendurado num lampião de rua, para que o mundo inteiro pudesse assistir. Assustados? Acredito. Mas não estejam apenas assustados. O terror não é gratuito. É simbólico. Sexo, dinheiro, cigarros: as marcas da corrupção ocidental.
Este pequeno episódio faz parte de um livro notável que, atenção, Brasil, a Jorge Zahar acaba de publicar. Intitula-se "Ocidentalismo" e foi escrito pelo jornalista Ian Buruma e pelo filósofo Avishai Margalit.
A ressonância do título não é inocente: em 1978, Edward Said publicava "Orientalismo" e lançava as bases dos estudos pós-coloniais. Tese de Said: o Ocidente dominara o "Outro" porque construíra sobre ele uma visão distorcida e falaciosa. A tese fez sucesso na cabeça dos simples, e Said nunca perdeu um minuto a analisar a natureza contraditória do seu próprio argumento. Se os preconceitos do Ocidente eram distorcidos e falaciosos, como foi possível ao Ocidente dominar uma realidade que, segundo Said, teoricamente lhe escapava?


"Ocidentalismo" é um brilhante ensaio sobre a ameaça terrorista que pende sobre o mundo ocidental

Buruma e Margalit não respondem a essas questões. O interesse do livro é outro: explicar de que forma os inimigos do Ocidente se unem intelectualmente para o destruir. O ódio à Cidade, espaço "par excellence" do homem ocidental, é apenas parte da história. Não foi por acaso que o 11 de Setembro desabou sobre Nova York: a "Big Apple" afigura-se, aos olhos dos fanáticos, como centro do hedonismo idólatra, do capitalismo rasteiro e, claro, da judiaria internacional.
Mas a força do argumento de Buruma e Margalit não está apenas na descrição desse ódio. A originalidade do ensaio está na forma como os autores atribuem ao Ocidente a produção (e a exportação) do próprio "ocidentalismo". O horror à cidade pode unir o Taleban e o Khmer Vermelho. Mas o desprezo intelectual pela Cidade está já nos textos de Wagner e nas condenações ao filistinismo de Paris; está na retórica nazista (e anti-semita) que olhava para a cultura urbana de Weimar como explicação da decadência alemã; está na repulsa pelos "lojistas" de Londres, incapazes de suplantarem o seu conforto burguês na busca da visão heróica, e tantas vezes sacrificial, presente em Nietzsche, Marx ou mesmo Sombart.
"Ocidentalismo" é um brilhante ensaio sobre a ameaça terrorista que pende sobre as cabeças ocidentais. Mas é mais do que isso: é uma tentativa de colocar o debate no desconfortável terreno das idéias. Desde o 11 de Setembro que o mundo debate as "causas" do terrorismo. Pobreza? Israel? Imperialismo americano? Buruma e Margalit respondem: não. Ideologia. As idéias têm conseqüências. E, como lembrava Heinrich Heine com assustadora premonição no século 19, as idéias de um modesto professor, encerrado no seu gabinete de estudo, podem mesmo destruir uma civilização.


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