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CONCERTO
Nelson Freire, o incrível
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Um concerto desses lava a
alma da gente; e foram dois
em um. Na primeira parte, Nelson
Freire, o incrível, tocou um incrível Brahms. Na segunda, o abominável Walton soou, incrivelmente, genial -artes de Roberto
Minczuk, num concerto histórico.
Vamos ver a vida, por um minuto, dos dedos do pianista de
Boa Esperança. As teclas de marfim vêm e vão, numa velocidade
impossível de medir. A explosão
de som sai da polpa surda e chega
ao tímpano como se a mágica fosse natural. Martelar, trançar, deslizar, correr, parar: há uma alegria
do movimento que é independente do teor da música. Não
existe música difícil, da perspectiva dos dedos; o difícil está no homem, quando não é capaz de entender fisicamente a música. Mas
Nelson Freire entende tudo.
Repertório
Freire tocou o "Concerto nš 2
para piano e orquestra" de
Brahms (1833-97) de um jeito
muito diferente do que se poderia
imaginar. O "Allegro non troppo"
foi uma ferocidade. E o "Allegro
appassionato" fez do ré menor a
tonalidade trágica dessa quase
sinfonia.
Mas o Brahms de Nelson Freire
tem um lado material, ou substancial, ou de maturidade que
aceita toda a carga de afetos sem
ilusões nem piedades. Isso significa também entender o tempo de
um modo variável -sem variar
necessariamente o pulso, mas a
inteligência humana da música.
É preciso abrir um parêntese,
para falar do trompista Luiz Garcia. Nervos de aço são o mínimo
que se espera do incompreensível
ser que resolver tocar trompa.
Mas é preciso ter nervos de uma
substância ainda não identificada
para tocar sozinho o início do
concerto de Brahms, com Nelson
Freire sentado a três metros, o ex-trompista Minczuk no pódio e
3.200 ouvidos na platéia.
A primeira frase foi boa, com
deslizes mínimos de afinação. A
segunda foi a frase que Brahms
escutou na cabeça de Brahms que
ele tinha, mas provavelmente jamais teve a chance de escutar fora
dela.
Outro solista em destaque foi o
"spalla" dos violoncelos, Roman
Mekinulov. Teria tocado um
Brahms mais expressivo ainda, se
não fosse coadjuvante de Nelson
Freire (no "Andante"). Mas o
mais pode ser menos. Se o seu
menos ainda não foi o máximo, é
porque ele estava, estrategicamente, em terra estranha. Vale a
pena ver, hoje à noite, em Campos
do Jordão (com transmissão ao
vivo pela TV Cultura), o que não
sai dessa conversa do mineiro
com o russo.
Emoção
O terceiro movimento, de qualquer modo, foi de encher os olhos
d'água. Eis o momento de dizer
por que esse foi um concerto histórico. Quem prestou atenção na
diferença do som dos violinos
nessa noite sabe. Quem estava de
alma livre para sentar na paisagem de acordes parados, quem
estava de espírito aceso para
aguentar o tranco dos allegros,
quem tem alguma coisa de Viena
por dentro, para escutar a valsa do
final, sabe. Eis a verdade, o fato:
Minczuk inventou o som das cordas da Osesp quinta-feira.
Há muito que se esperava para
ver o que seria isso. As cordas definem a sinfônica; e agora a gente
sabe o que é o som de São Paulo.
A cidade mudou por conta dessa orquestra e muda novamente
com as cordas: intensas, timbre
mais para vienense (não berlinense, não nova-iorquino), com uma
coragem sem arrogância. São
Paulo, quem diria, pode ser isso.
Não sobra espaço para falar da
cantata "Belshazzar's Feast" de
William Walton (1902-83), que a
Osesp tocou com o Coral da
Osesp e o Coral Paulistano, mais o
seguríssimo barítono americano
Thomas Potter. Este é o Walton
jovem, londrino, pré langores da
ilha de Ischia, conjugando irreverência com conforto, satirizando
a Londres-Babilônia dos anos 30.
Leia-se, também: São Paulo 2001.
Foi um concerto de despedida
para o regente Samuel Kerr, do
Paulistano. Será que o resto de
nós fez por merecer essa música
toda da quinta? Provavelmente
não. Mas ele merece, e foi lindo
escutar a cantata na companhia
de um músico assim.
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