São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

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CONCERTO

Nelson Freire, o incrível

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Um concerto desses lava a alma da gente; e foram dois em um. Na primeira parte, Nelson Freire, o incrível, tocou um incrível Brahms. Na segunda, o abominável Walton soou, incrivelmente, genial -artes de Roberto Minczuk, num concerto histórico.
Vamos ver a vida, por um minuto, dos dedos do pianista de Boa Esperança. As teclas de marfim vêm e vão, numa velocidade impossível de medir. A explosão de som sai da polpa surda e chega ao tímpano como se a mágica fosse natural. Martelar, trançar, deslizar, correr, parar: há uma alegria do movimento que é independente do teor da música. Não existe música difícil, da perspectiva dos dedos; o difícil está no homem, quando não é capaz de entender fisicamente a música. Mas Nelson Freire entende tudo.

Repertório
Freire tocou o "Concerto nš 2 para piano e orquestra" de Brahms (1833-97) de um jeito muito diferente do que se poderia imaginar. O "Allegro non troppo" foi uma ferocidade. E o "Allegro appassionato" fez do ré menor a tonalidade trágica dessa quase sinfonia.
Mas o Brahms de Nelson Freire tem um lado material, ou substancial, ou de maturidade que aceita toda a carga de afetos sem ilusões nem piedades. Isso significa também entender o tempo de um modo variável -sem variar necessariamente o pulso, mas a inteligência humana da música.
É preciso abrir um parêntese, para falar do trompista Luiz Garcia. Nervos de aço são o mínimo que se espera do incompreensível ser que resolver tocar trompa. Mas é preciso ter nervos de uma substância ainda não identificada para tocar sozinho o início do concerto de Brahms, com Nelson Freire sentado a três metros, o ex-trompista Minczuk no pódio e 3.200 ouvidos na platéia.
A primeira frase foi boa, com deslizes mínimos de afinação. A segunda foi a frase que Brahms escutou na cabeça de Brahms que ele tinha, mas provavelmente jamais teve a chance de escutar fora dela.
Outro solista em destaque foi o "spalla" dos violoncelos, Roman Mekinulov. Teria tocado um Brahms mais expressivo ainda, se não fosse coadjuvante de Nelson Freire (no "Andante"). Mas o mais pode ser menos. Se o seu menos ainda não foi o máximo, é porque ele estava, estrategicamente, em terra estranha. Vale a pena ver, hoje à noite, em Campos do Jordão (com transmissão ao vivo pela TV Cultura), o que não sai dessa conversa do mineiro com o russo.

Emoção
O terceiro movimento, de qualquer modo, foi de encher os olhos d'água. Eis o momento de dizer por que esse foi um concerto histórico. Quem prestou atenção na diferença do som dos violinos nessa noite sabe. Quem estava de alma livre para sentar na paisagem de acordes parados, quem estava de espírito aceso para aguentar o tranco dos allegros, quem tem alguma coisa de Viena por dentro, para escutar a valsa do final, sabe. Eis a verdade, o fato: Minczuk inventou o som das cordas da Osesp quinta-feira.
Há muito que se esperava para ver o que seria isso. As cordas definem a sinfônica; e agora a gente sabe o que é o som de São Paulo.
A cidade mudou por conta dessa orquestra e muda novamente com as cordas: intensas, timbre mais para vienense (não berlinense, não nova-iorquino), com uma coragem sem arrogância. São Paulo, quem diria, pode ser isso.
Não sobra espaço para falar da cantata "Belshazzar's Feast" de William Walton (1902-83), que a Osesp tocou com o Coral da Osesp e o Coral Paulistano, mais o seguríssimo barítono americano Thomas Potter. Este é o Walton jovem, londrino, pré langores da ilha de Ischia, conjugando irreverência com conforto, satirizando a Londres-Babilônia dos anos 30. Leia-se, também: São Paulo 2001.
Foi um concerto de despedida para o regente Samuel Kerr, do Paulistano. Será que o resto de nós fez por merecer essa música toda da quinta? Provavelmente não. Mas ele merece, e foi lindo escutar a cantata na companhia de um músico assim.


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