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"O LÉXICO DE GUIMARÃES ROSA"
Obra desvenda mistérios do "rosês"
NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando uma criança lida
com palavras pela primeira
vez em sua vida, o nome de cada
objeto parece coincidir com o
próprio objeto. Imagine então o
português como uma língua que
você acaba de inaugurar e cuja estrutura léxica e sintática é diferente da que você conhece, mais flexível. Se fosse assim, com o prefixo
des, por exemplo, poderíamos
formar palavras como desescrever, desdescer; com o prefixo sob,
sobestar, sobfazer, sobpular. Com
o sufixo mente, apontadormente,
narizmente. As palavras estariam
sempre se transformando.
Pense ainda na capacidade onomatopaica levada às últimas consequências, numa situação em
que os sons pudessem ser imitados pelas palavras. Teríamos o
toctocar, o plimplimzar, o grrrar,
o ahahahzar. E os diminutivos e
aumentativos usados à vontade,
contraditoriamente, como bonitãozinho, pãozinhozarro?
Imagine essas possibilidades e a
colaboração de regionalismos, gírias, tudo empregado com ampla
liberdade de criação, com as palavras como que degustadas, e teremos uma idéia do que é ler a obra
de Guimarães Rosa ou de como
construir sentidos à sua maneira.
É esse o encanto a que nos remete "O Léxico de Guimarães Rosa", de Nilce Sant'Anna Martins.
Trata-se de um dicionário que
contém um extenso levantamento dos recursos expressivos do vocabulário de Rosa, esclarecendo
formações misteriosas, recorrentes em sua obra.
Professora da Faculdade de Letras da USP, especializada em estilística, Nilce Sant'Anna dedicou
dez anos a essa pesquisa monumental, relacionando em verbetes
cerca de 8.000 palavras, com o respectivo abono, a localização na
obra do autor e a indicação das
fontes de consulta utilizadas no
trabalho. Como estudo da língua
portuguesa ou da obra de Guimarães Rosa, para o escritor ou para
o crítico, é um volume valioso.
Ocorre que a amplitude da obra
e aqui, no caso, do vocabulário de
Guimarães Rosa é tamanha que a
leitura deste léxico se torna uma
atividade prazerosa, em que se revelam várias potencialidades da
língua portuguesa. Como se fizéssemos uma leitura transversal da
obra do autor, percorrendo ao
mesmo tempo "Grande Sertão:
Veredas", "Primeiras Estórias",
"Corpo de Baile", "Outras Estórias", "Sagarana", compreendendo-se alguns mistérios, contidos
em contos como "Nhinhinha",
nas falas de Riobaldo ou nos prefácios múltiplos de "Tutaméia".
É o caso, por exemplo, da palavra aletria, parte do título de um
desses prefácios ("Aletria e Hermenêutica") e que é, na verdade, o
nome do macarrão conhecido como cabelo-de-anjo, mas que também ressoa como aletramento, ou
não letra e também como alegria.
Pelo reconhecimento da formação das palavras, revela-se a cultura linguística, a erudição, mas, ao
mesmo tempo, a simplicidade do
autor. Vaqueiro-médico ou médico-vaqueiro, Rosa é o pesquisador da fala do sertanejo, o estudioso das línguas nórdicas, das
ciências ocultas, da filosofia grega
pré-socrática, levando-nos muitas vezes à conclusão de que esse
conhecimento está sintetizado
nos olhos e na fala do sertanejo.
Seus espaços são a serra do
Mim, o Urubuquaquá, e a fala do
narrador e dos personagens é como a formação das veredas: oásis
no meio da aridez, onde nascem
buritis e riachos, lugares em que a
terra é fértil e em torno dos quais
se formam pequenos povoados.
Só para aumentar a curiosidade
do leitor, aí vão algumas das brincadeiras encontradas neste léxico:
aeiouar, que significa emitir sons
variados; boólatra , criador e
amante de bois; mãezar, proteger.
E 65 variantes do nome do diabo,
mais de 12 páginas compostas de
vocábulos formados a partir do
prefixo des ou palavras dicionarizadas, embora pouco conhecidas,
como jaguacacaca.
Para ser completo, seria na verdade necessário tintimportintinhar muito mais, o que infelizmentemente não cabe numa resenhazinhinha.
Noemi Jaffe é professora de literatura
brasileira do colégio Equipe, mestre em
literatura brasileira pela USP e autora de
"Folha Explica Macunaíma", em produção
O Léxico de Guimarães Rosa
Autora: Nilce Sant'Anna Martins
Editora: Edusp
Quanto: R$ 50 (536 págs.)
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