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São Paulo, segunda-feira, 07 de julho de 2003

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NELSON ASCHER

Orwell e o dedo na ferida

Dores lombares, calvície, vista e audição fracas: eis alguns dos efeitos da idade. Há outros, claro, mas não consigo me lembrar deles. Apesar disso, nem tudo nela é ruim, a começar pelo fato de que o acúmulo de anos remete às incontáveis oportunidades que seu, por assim dizer, beneficiário perdeu de empacotar, bater as botas, passar desta para a melhor.
Outra vantagem: quanto mais velho se é, mais devagar se envelhece. Cada ano acrescentado à coluna vertebral representa uma parcela menor do que já se viveu. Assim, uma mulher que, aos 20 anos, dê à luz a uma filha será, no seu primeiro aniversário, 21 vezes mais velha do que ela, enquanto no décimo a correlação terá caído para o triplo da idade. Quando a filha for uma adulta de 20, a mãe, com apenas o dobro, ainda será uma jovem mulher. Quarenta anos depois ambas serão velhinhas praticamente iguais. É essa estranha dialética que explica minha afasia, duas décadas atrás, diante de um escritor que, bem mais velho então, hoje é quase meu contemporâneo.
O evento ocorreu em janeiro de 1984 quando, por razões cronológicas, o assunto do momento era George Orwell (1903-1950), cujo centenário se comemorou no último 25 de junho. O escritor em questão discorria, para seu pequeno e atento público reunido num restaurante carioca, sobre o artigo recém-concluído no qual demonstrara, irrefutavelmente, segundo ele, a mediocridade do autor de "1984". Ignorando a correlação de forças, ou melhor, de primaveras e invernos descrita acima, cometi o erro de objetar que, não obstante o inglês não se distinguir como romancista, seus ensaios, seu jornalismo durante a Segunda Guerra e as memórias de sua participação na guerra civil espanhola ("Hommage to Catalonia", traduzido como "Lutando na Espanha ") garantiam-lhe um lugar importante na história de sua época.
A reação do escritor que, chamando a atenção de todos os comensais do recinto, poderia ter sido qualificada de poluição sonora, foi vigorosa e, quanto a mim, não sendo parente do Popeye, recolhi-me, após tamanho espinaframento, a uma embaraçada insignificância. Terminado o jantar e dispersa a platéia, cada qual seguiu para sua casa ou hotel e, como tanto o meu quanto o dele ficavam na mesma rua de Copacabana, caminhamos juntos e em silêncio até o mais próximo. Ao chegarmos, ele convidou-me a uma saideira e, mal nos sentamos no bar, felizmente vazio, disse-me: "agora me fale sobre essas outras obras do Orwell. São boas mesmo? Vale a pena lê-las?".
Embora o currículo de quem quer que seja se faça de escolhas acertadas e equivocadas, às vezes o acaso feliz ou infeliz eclipsa ambas. Minha sorte foi, em meados dos anos 70, a de descobrir a obra de Borges e aprender inglês com os quatro volumes ensaístico-jornalísticos de Orwell que a Penguin Books acabara de publicar. Só posteriormente li os livros que o consagraram, "1984", uma antiutopia ou distopia influenciada por um romance superior dos anos 20, "Nós", do russo Ievguêni Zamiátin, e "A Revolução dos Bichos" (Animal Farm), uma sátira à maneira de Jonathan Swift (autor de "As Viagens de Gulliver"), que deriva sua eficácia, por um lado, de ter achado a formulação feliz para uma análise política penetrante e, por outro, da concisão certeira de frases epigramáticas como: "Todos os bichos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros".
Orwell fez parte junto com o húngaro Arthur Koestler, entre outros, do círculo seleto de intelectuais progressistas que, tendo se aproximado no entreguerras do movimento comunista, constataram pessoalmente que o experimento soviético era antes de mais nada uma traição do ideário esquerdista. Alistando-se como voluntário na Espanha, ele escapou de ser morto, não pelos falangistas (que lhe acertaram uma bala no pescoço), mas por seus pretensos aliados que, seguindo ordens de Moscou, assassinaram os anarquistas e trotskistas ao lado dos quais o romancista combatera. De volta a Londres, suas piores suspeitas se confirmaram quando nazistas e comunistas, formando uma coalizão (que duraria dois anos cruciais) para invadir a Polônia, desencadearam o conflito mundial.
Se bem que o ano de 1989 parecesse tê-lo soterrado sob os escombros do sistema que denunciara, o recente início de um novo ciclo histórico o tornou de novo atual, revelando que, mais do que o desmascaramento da tirania soviética, a essência de sua obra consistia numa crítica à intelectualidade ocidental e ao apego desta por todo tipo de ditadores, carrascos e homicidas em geral: Lênin, Stálin, Trótski, Hitler e Mao ontem, Fidel, Saddam, Kim Jong Il, Arafat e Osama nos nossos dias. O principal mérito de Orwell era e segue sendo o de apontar incansavelmente que, malgrado as boas intenções manifestas, são antes os rancores irracionais, sobretudo em face da democracia liberal, que motivam parte substancial dos intelectuais.
Para quem, como eu, havia lido seus ensaios 30 anos atrás, a surpresa (que, aliás, não deveria surpreender a ninguém) é a de quão pouco as coisas se alteraram. Ver social-democratas europeus (tão democratas quanto eram socialistas os nacional-socialistas) torcerem por regimes islamo-fascistas, ou trotskistas apoiando abertamente o nazislamismo dos fundamentalistas teocratas é como entrar na máquina do tempo e emergir nos piores momentos dos anos 30 e 40. Não é à toa, portanto, que se procura outra vez denegrir a reputação de Orwell com acusações que, mesmo se verdadeiras, são irrelevantes. Afinal, a ferida na qual ele pusera o dedo está, hoje mais do que nunca, escancaradamente aberta.



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