São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2001

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MÚSICA ERUDITA

Tristeza, em Mahler, não tem fim

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Vamos falar do "Adagietto": mas antes é preciso falar do segundo movimento da "Quinta" de Mahler (1860-1911). Foi ali que a Filarmônica de Israel se abriu, afinal, para a música. Desse ponto em diante -passada uma "Primeira Sinfonia" de Beethoven (1770-1827) relativamente inexpressiva e uma "Trauermarsch" em passo bem comedido-, o concerto foi um acontecimento, uma ressurreição, sons e sentidos dizendo a verdade de cada um de nós.
Zubin Mehta não é um regente de revelações ou originalidades. Seus pontos fortes são a fluência, a segurança, a energia. Rege tudo de cor, mesmo se nem sempre de coração. No concerto de domingo, na Sala São Paulo, exibia um mau humor transcendental -mas não na música, que ele interpreta quase sem ironia, mas sem nenhum muxoxo. O som da orquestra se presta para essa vitalidade. Não são as cordas mais lindas do mundo; mas, quando os violinos atacam um tema na quarta corda, ninguém se pergunta se é bonito ou não, porque a escuta se transporta para outro plano, onde esse juízo é ninharia.
A filarmônica toca tanto melhor quanto mais difícil for a música. E a dificuldade nem sempre está onde aparenta: pode ser um pianíssimo nos tímpanos, acompanhando o retorno, aos soluços, do tema melancólico do segundo movimento. Pode ser nas colcheias fogosas dos segundos violinos, no fugato que abre o "Rondó". Na trompa sozinha, no primeiro trompete -dois personagens centrais no romance da "Quinta" e dois grandes músicos da filarmônica (uma única nota quebrada na trompa e a afinação menos que perfeita do trompete na primeira página da sinfonia não alteram essa impressão).
Vamos falar do "Adagietto". A hesitação do início, a melodia das cordas saindo do nada sobre acordes ondulantes da harpa, "suspende o curso do tempo e incita a música a olhar para trás", como escreveu Adorno (em "Mahler - Uma Fisionomia Musical").
O intervalo descendente de segunda ganha, aqui, um papel essencial. A melancolia de Mahler, o estranhamento que cai sobre os ombros do narrador imaginário -e de cada ouvinte que aceita o chamado dessa música- têm nesse intervalo um emblema.
A banalidade se transforma em abstração, sob o impacto vivido da experiência. Isso é música. Isso foi música, numa simples suspensão, um último si bemol dos violinos, demorando para sempre até cair no lá, sobre a tônica gravíssima dos contrabaixos. E a energia de Mehta, constrangida pelo pulso veneziano da música, ressaltou tudo o que não é mais pulso, harmonia, quarta corda, tudo o que a música escuta no seu passado e entende como sentido humano.
Tristeza não tem fim, em Mahler; felicidade, sim. O "Rondó" não é menos emaranhado e truncado do que o segundo movimento. Mesmo o esfuziante coral dos metais não será o bastante para inverter o sinal negativo na soma de tudo que passou. A platéia explode, mas isso é formação reativa. Quem ouviu a Filarmônica de Israel tocando a "Quinta" não pode mais esconder de si mesmo o que ouviu. Não pode mais se esconder de si -uma das tantas lições que a música nos dá.


Filarmônica de Israel
   
Quando: hoje, às 20h30
Onde: Theatro Municipal do Rio (pça. Floriano, s/nš, tel. 0/xx/21/2262-3501)
Quanto: de R$ 50 a R$ 1.500




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