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MÚSICA ERUDITA
Tristeza, em Mahler, não tem fim
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Vamos falar do "Adagietto": mas antes é preciso falar
do segundo movimento da
"Quinta" de Mahler (1860-1911).
Foi ali que a Filarmônica de Israel
se abriu, afinal, para a música.
Desse ponto em diante -passada
uma "Primeira Sinfonia" de Beethoven (1770-1827) relativamente
inexpressiva e uma "Trauermarsch" em passo bem comedido-, o concerto foi um acontecimento, uma ressurreição, sons e
sentidos dizendo a verdade de cada um de nós.
Zubin Mehta não é um regente
de revelações ou originalidades.
Seus pontos fortes são a fluência, a
segurança, a energia. Rege tudo
de cor, mesmo se nem sempre de
coração. No concerto de domingo, na Sala São Paulo, exibia um
mau humor transcendental
-mas não na música, que ele interpreta quase sem ironia, mas
sem nenhum muxoxo. O som da
orquestra se presta para essa vitalidade. Não são as cordas mais lindas do mundo; mas, quando os
violinos atacam um tema na
quarta corda, ninguém se pergunta se é bonito ou não, porque a escuta se transporta para outro plano, onde esse juízo é ninharia.
A filarmônica toca tanto melhor
quanto mais difícil for a música. E
a dificuldade nem sempre está
onde aparenta: pode ser um pianíssimo nos tímpanos, acompanhando o retorno, aos soluços, do
tema melancólico do segundo
movimento. Pode ser nas colcheias fogosas dos segundos violinos, no fugato que abre o "Rondó". Na trompa sozinha, no primeiro trompete -dois personagens centrais no romance da
"Quinta" e dois grandes músicos
da filarmônica (uma única nota
quebrada na trompa e a afinação
menos que perfeita do trompete
na primeira página da sinfonia
não alteram essa impressão).
Vamos falar do "Adagietto". A
hesitação do início, a melodia das
cordas saindo do nada sobre
acordes ondulantes da harpa,
"suspende o curso do tempo e incita a música a olhar para trás",
como escreveu Adorno (em "Mahler - Uma Fisionomia Musical").
O intervalo descendente de segunda ganha, aqui, um papel essencial. A melancolia de Mahler, o
estranhamento que cai sobre os
ombros do narrador imaginário
-e de cada ouvinte que aceita o
chamado dessa música- têm
nesse intervalo um emblema.
A banalidade se transforma em
abstração, sob o impacto vivido
da experiência. Isso é música. Isso
foi música, numa simples suspensão, um último si bemol dos violinos, demorando para sempre até
cair no lá, sobre a tônica gravíssima dos contrabaixos. E a energia
de Mehta, constrangida pelo pulso veneziano da música, ressaltou
tudo o que não é mais pulso, harmonia, quarta corda, tudo o que a
música escuta no seu passado e
entende como sentido humano.
Tristeza não tem fim, em Mahler; felicidade, sim. O "Rondó"
não é menos emaranhado e truncado do que o segundo movimento. Mesmo o esfuziante coral dos
metais não será o bastante para
inverter o sinal negativo na soma
de tudo que passou. A platéia explode, mas isso é formação reativa. Quem ouviu a Filarmônica de
Israel tocando a "Quinta" não pode mais esconder de si mesmo o
que ouviu. Não pode mais se esconder de si -uma das tantas lições que a música nos dá.
Filarmônica de Israel
Quando: hoje, às 20h30
Onde: Theatro Municipal do Rio (pça.
Floriano, s/nš, tel. 0/xx/21/2262-3501)
Quanto: de R$ 50 a R$ 1.500
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