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BIOGRAFIA
Escritor recriou a vida social baiana
Amado se definia como um narrador à solta, um contador de histórias, e admitia que não era um escritor culto, intelectual
ANTONIO RISÉRIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ainda jovem , Jorge Amado
viu a velha Sé da Bahia, tratada como trambolho pela elite e
pela imprensa locais, ser demolida a golpes de picaretas. E reagiu.
"Dos púlpitos dessa igreja o padre
Antonio Vieira pronunciara com
sua voz de fogo os sermões mais
célebres de sua carreira", escreveu, protestando.
Corria à boca pequena que o então cardeal embolsara uma bela
gorjeta para permitir que uma
empresa de transportes urbanos
derrubasse o templo. Revoltado,
Jorge partiu para o ataque, elogiando os "índios patriotas" que,
nos primeiros dias coloniais, haviam feito uma "experiência culinária" com o bispo Sardinha. Mas
para acrescentar que, em pleno
século 20, baiano já não gostava
de bispo nem como alimento.
Na montanha-russa de altos e
baixos que era Jorge Amado, aí
está, certamente, uma nota que
merece ser guardada. Mas ela já
diz respeito à sua vivência da cidade da Bahia, um dos pólos da
obra amadiana.
A peripécia existencial do escritor começa antes disso, na região
do cacau, seu outro pólo romanesco. Sim. Filho de um dos desbravadores da região cacaueira,
Jorge Leal Amado de Faria nasceu
em 1912 numa fazenda no sul da
Bahia, eixo Ilhéus-Itabuna, cuja
vida social ele recriaria literariamente, numa série de romances.
E foi daí, da chamada "região grapiúna", que ele partiu para Salvador e, em seguida, para o Rio de
Janeiro, iniciando sua vida político-cultural.
Vêm então os primeiros livros, a
militância comunista, os casamentos -primeiro, com Matilde
Garcia Rosa, com quem teve uma
filha, morta aos 14 anos de idade;
depois, com a escritora Zélia Gattai, que lhe dá mais dois filhos,
João Jorge e Paloma (esta assim
batizada em homenagem ao amigo Picasso, companheiro seu de
exílio francês).
Foram tempos difíceis aqueles,
principalmente após a implantação da ditadura do Estado Novo.
Entre outras coisas, Jorge é preso
no Rio e em Manaus, refugia-se
na Argentina, passa por um confinamento em Salvador, vê "Capitães da Areia" ser apreendido e
queimado em praça pública por
determinação do governo. Até
que, com a redemocratização de
1945, é eleito deputado federal por
São Paulo, pela legenda do PCB.
Assembléia Constituinte
Mas a alegria dura pouco. O
PCB é proscrito, Jorge tem o mandato cassado. Toma o rumo de
Paris, muda-se depois para Praga,
corre e percorre o mundo comunista. Recebe o Prêmio Stálin, pelo conjunto da obra, que aliás é
editada na então União Soviética
com tiragens superiores a 1 milhão de exemplares.
E, finalmente, em 1952, retorna
ao Brasil. Já é um escritor de sucesso internacional -graças ao
poder da máquina publicitária
comunista, sim, mas também
graças ao fascínio que sua obra
exerce, como se pode ver, por
exemplo, pelo impacto de "Jubiabá" sobre Albert Camus.
E ele vai consolidar definitivamente a sua fama mundial com a
publicação de, entre outros, "Gabriela, Cravo e Canela" e "Dona
Flor e Seus Dois Maridos". Agora,
não há mais retorno. Mas com
um dado que é bem mais comum
do que o público costuma imaginar: ao tremendo sucesso popular, com livros traduzidos em dezenas de idiomas, correspondem
as inúmeras restrições da crítica.
E aqui tenho que fazer uma confissão. Em suas adolescências, alguns escritores baianos, nascidos
na década de 1940/50 para cá, criticaram e combateram Jorge
Amado -e eu não fugi a essa regra contestadora. Diversas coisas
me levavam a discursar contra o
autor de "Mar Morto": as ligações
de Jorge com o que eu achava que
era o que havia de pior na esquerda brasileira, sua defesa do stalinismo, seus excessos de baianismo, sua literatura pouco ou nada
rigorosa para um leitor educado
em Lorca, Joyce, Pound, Rosa e
poesia concreta, seu gosto pela
"política literária", sua facilidade
para fazer concessões, seus elogios indiscriminados, às vezes cobrindo de belas palavras um punhado de canalhas, cretinos, cafajestes e subliteratos nascidos na
Bahia, ou fora dela.
Mantenho ainda hoje, no essencial, essas restrições -e Jorge sabia disso. Mas fui aprendendo a
admirá-lo, no plano pessoal, e a
me abrir para a sedução de sua
narrativa. Há motivos. E muitos.
Jorge, aliás, era um bom crítico
de si mesmo. Boa parte das críticas feitas à sua obra coincidem
com (ou repetem) o que ele dizia
de si próprio. Jorge sabia (e declarava publicamente) que não era
um intelectual, um escritor culto,
um artífice da prosa estética, um
homem que tinha um domínio
rosiano ou cabralino da palavra.
Pelo contrário, era um narrador à
solta, muitas vezes desleixado, escrevendo de um modo oleoso e
esparramado como as ondas gordas da Bahia de Todos os Santos.
Era um contador de histórias, como gostava de dizer, deixando o
texto escorrer à vontade, alheio às
exigências de um verdadeiro artesanato linguístico.
Ainda assim, alguns de seus livros estão, sem dúvida, entre os
que a literatura brasileira produziu de melhor. "Mar Morto", por
exemplo. Ou "Gabriela" e "Tocaia
Grande". Mas, sobretudo "A
Morte e a Morte de Quincas Berro
d'Água". Neste caso, uma prosa
ao mesmo tempo limpa e deliciosa, concisa e fluente.
Mas é também verdade que a
obra amadiana raramente é examinada com um olhar crítico digno desse nome. A enxurrada de
elogios banais tem sua contraparte em ataques estapafúrdios e até
mesmo ridículos. Ora Jorge é
exaltado por sua inigualável "força" (e Álvaro Lins já dizia que essa
é uma questão de atletismo, e não
literatura), ora é desancado pelo
subjesuitismo acadêmico em termos de um suposto "uso imotivado" do palavrão, como se o nosso
povo não fosse o que é -ou como
se o romancista não fosse filho de
antigas cantigas de maldizer e do
verso destabocado de Gregório de
Matos.
De resto, penso que a virtude
central de Jorge (ainda que também esta virtude traga vícios e defeitos) foi mergulhar fundo na vida de sua gente. Por esse caminho, ele chegou à questão sociorracial brasileira e às manifestações culturais populares de extração negro-africana -em especial, ao candomblé, do qual se tornou "ministro" de Xangô, ostentando o título de Obá Arolu.
Aqui, os orixás escreveram certo por linhas tortas: transformaram em adepto e glorificador o
comunista que viera pretendendo
se utilizar deles para fazer pregações milenaristas. Jorge foi, assim,
fundamental para que a questão
negra se firmasse no imaginário
brasileiro. Um "cavalo de santo",
como se diz. Mas não da perspectiva da guetificação ou do apartheid multiculturalista, e sim procurando encarar a riqueza da realidade de nossa mestiçagem genética e simbólica.
É claro que nada disso abole
seus grandes equívocos políticos e
culturais, nem suas limitações intelectuais e artísticas. A sua complacência final diante de tantos
absurdos. Talvez tenha razão Rachel de Queiroz, e em termos mais
amplos do que imaginou, quando
disse que Jorge se tornou em escravo do êxito que conquistou.
Mas também não posso deixar de
reconhecer que há uma alta dose
de verdade no que dele disse o cubano Severo Sarduy: "Sua obra
tem um aspecto irrefutável, incontornável: sua extrema transparência em face da linguagem
popular de sua cidade e de seu
país. Não conheço nenhum caso
de identificação maior entre um
homem e uma cidade, um homem e uma língua. Amado conseguiu compreender, falar e rezar
na língua de seus ancestrais. Isso
vale mais que tudo".
Antonio Risério é poeta, ensaísta e tradutor, autor, entre outros, de "Textos e
Tribos: Poéticas Extraocidentais nos Trópicos Brasileiros" (Imago, 93), "Avant-Garde na Bahia" (Instituto Pietro Bardi e
Lina Bo, 95), "Fetiche" (FCJA, 96) e "Oriki
Orixá"(Perspectiva, 96)
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