|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
EXCLUSIVO
Folha publica dois trechos inéditos
Escritor deixou dois livros ainda não publicados, "Apostasia" e "Bóris, o Vermelho", cujos trechos são reproduzidos abaixo
"A APOSTASIA UNIVERSAL DE ÁGUA BRUSCA"
1. O apito do navio ressoou na
distância anunciando a chegada
próxima. Ao ouvi-lo, o coronel
Tavinho -coronel Otávio Xavier
d'Abadia, senhor de baraço e cutelo- suspendeu a leitura do jornal, exemplar de "A Tarde" atrasado de oito dias, depositou-o na
mesa da escrivaninha, levantou-se da cadeira de braços. Até então
acocorado no corredor, Inocêncio pôs-se de pé, abriu a porta da
rua e ficou à espera do lado de fora.
O coronel tomou do chapéu e
da bengala -por que o chapéu
gelo e a bengala de castão de ouro?
Não estava na capital, não ia visitar o governador, por que então
os escolhera? Vá-se saber por quê.
2. Olhar benévolo, o coronel
percorreu a praça Dois de Julho,
balançou a cabeça, satisfeito, gostava do lugar. Ali, em casas confortáveis, habitavam famílias
abastadas, personalidades emigrantes. O juiz de direito, doutor
Hermes Rubim; o comerciante
Manuel Franco, dono do armazém Bela Galícia, de secos e molhados, correspondente do Banco
do Brasil; doutor Olívio Lemos,
promotor público; o farmacêutico Jeremias das Neves -não
completara nem sequer o curso
de farmácia, mas no diagnóstico e
na receita dava de dez a zero em
muito médico formado. No doutor Marcos Freire nem se fala: o
doutorzinho -doutorzinho na
voz das moças casadoiras, virgens
assanhadas à vista do almofadinha-, esse não lhe chegava aos
pés. Na esquina, semiescondido
pela copa das mangueiras, sobranceiro, alteava-se o solar
-seis janelas sobre a rua, três de
cada lado da porta de duas bandeiras, porta e janelas quase sempre fechadas -, a casa de Didina.
Didina, ou seja, dona Esmeraldinha Montalbon de Sá Pacheco,
viúva, herdeira de duas fortunas:
a do pai, dom Fernando Montalbon, dono de ruas, de casas e sobrados em Juazeiro e em Petrolina, e a do pranteado esposo, coronel Astrogildo de Sá Pacheco, antigo senhor da Cancela do Meio,
hoje propriedade do coronel Tavinho: filha única, viúva sem filhos.
Herdeira universal, riqueza lendária, rendas incalculáveis e misteriosas, sovinice patente, ostensiva, glosada em prosa e verso. Nadava em dinheiro, economizava
vinténs, aos sábados, dia dos esmoleres, trancava a chave a porta
da rua.
Tema habitual das conversas
nas calçadas, dando lugar a discussões e apostas, segredo conservado a sete chaves, bulia com os
nervos da população: onde e como havia sido aplicada a dinheirama encaixada pela herdeira
quando da venda do latifúndio e,
posteriormente, das casas e sobrados, inclusive o da capital, este
sim, um solar de verdade, no Corredor da Vitória. Onde e como
ninguém sabia ao certo, circulavam rumores desencontrados:
depósito em contas bancárias de
renda compensadora e segura,
ações de empresa ainda mais
compensadoras, agiotagem a prazo curto e juros altos, por intermédio de terceiros, é claro. Terceiros, quem? Outro apaixonante
motivo de discussão: Miguel
Franco, Otaviano Lima, o da Sociedade de Peixes Salgados, o cegueta João Ribeiro, de Petrolina,
banqueiro de bicho e agiota?
Quase nonagenária, dona Didina tinha por única companhia
uma antiga cria da família, pouco
mais moça que ela: os cabelos
brancos e ralos da patroa, a carapinha alva e espessa da criada, sinhá Marocas, duas almas do outro mundo vagando no casarão
mal-assombrado. Havia quem
afirmasse serem irmãs por parte
de pai -comentar a vida alheia,
sem dúvida o esporte favorito dos
vizinhos em Água Brusca, línguas
afiadas, imaginação solta, benza
Deus!, poços de veneno, falta do
que fazer, arte de matar o tempo.
Breve notícia histórica da apostasia universal ocorrido em Água
Brusca, burgo do médio São
Francisco, na década de 20 ou de
como papa-hóstias e frei-bodes se
enfrentaram em guerra das seitas
cristãs, quando o bispo e o coronel se estranharam no exercício
do poder feudal ou "Não me venhas de borzeguins ao leito" ou
ainda "Se Paris vale u'a missa,
quantos cultos valerá a xoxota de
Astrud?".
Texto Anterior: Web traz pouca informação sobre autor Próximo Texto: "Bóris, o Vermelho" Índice
|