São Paulo, terça-feira, 07 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EXCLUSIVO

Folha publica dois trechos inéditos

Escritor deixou dois livros ainda não publicados, "Apostasia" e "Bóris, o Vermelho", cujos trechos são reproduzidos abaixo

"A APOSTASIA UNIVERSAL DE ÁGUA BRUSCA"

1. O apito do navio ressoou na distância anunciando a chegada próxima. Ao ouvi-lo, o coronel Tavinho -coronel Otávio Xavier d'Abadia, senhor de baraço e cutelo- suspendeu a leitura do jornal, exemplar de "A Tarde" atrasado de oito dias, depositou-o na mesa da escrivaninha, levantou-se da cadeira de braços. Até então acocorado no corredor, Inocêncio pôs-se de pé, abriu a porta da rua e ficou à espera do lado de fora.
O coronel tomou do chapéu e da bengala -por que o chapéu gelo e a bengala de castão de ouro? Não estava na capital, não ia visitar o governador, por que então os escolhera? Vá-se saber por quê.
2. Olhar benévolo, o coronel percorreu a praça Dois de Julho, balançou a cabeça, satisfeito, gostava do lugar. Ali, em casas confortáveis, habitavam famílias abastadas, personalidades emigrantes. O juiz de direito, doutor Hermes Rubim; o comerciante Manuel Franco, dono do armazém Bela Galícia, de secos e molhados, correspondente do Banco do Brasil; doutor Olívio Lemos, promotor público; o farmacêutico Jeremias das Neves -não completara nem sequer o curso de farmácia, mas no diagnóstico e na receita dava de dez a zero em muito médico formado. No doutor Marcos Freire nem se fala: o doutorzinho -doutorzinho na voz das moças casadoiras, virgens assanhadas à vista do almofadinha-, esse não lhe chegava aos pés. Na esquina, semiescondido pela copa das mangueiras, sobranceiro, alteava-se o solar -seis janelas sobre a rua, três de cada lado da porta de duas bandeiras, porta e janelas quase sempre fechadas -, a casa de Didina. Didina, ou seja, dona Esmeraldinha Montalbon de Sá Pacheco, viúva, herdeira de duas fortunas: a do pai, dom Fernando Montalbon, dono de ruas, de casas e sobrados em Juazeiro e em Petrolina, e a do pranteado esposo, coronel Astrogildo de Sá Pacheco, antigo senhor da Cancela do Meio, hoje propriedade do coronel Tavinho: filha única, viúva sem filhos.
Herdeira universal, riqueza lendária, rendas incalculáveis e misteriosas, sovinice patente, ostensiva, glosada em prosa e verso. Nadava em dinheiro, economizava vinténs, aos sábados, dia dos esmoleres, trancava a chave a porta da rua.
Tema habitual das conversas nas calçadas, dando lugar a discussões e apostas, segredo conservado a sete chaves, bulia com os nervos da população: onde e como havia sido aplicada a dinheirama encaixada pela herdeira quando da venda do latifúndio e, posteriormente, das casas e sobrados, inclusive o da capital, este sim, um solar de verdade, no Corredor da Vitória. Onde e como ninguém sabia ao certo, circulavam rumores desencontrados: depósito em contas bancárias de renda compensadora e segura, ações de empresa ainda mais compensadoras, agiotagem a prazo curto e juros altos, por intermédio de terceiros, é claro. Terceiros, quem? Outro apaixonante motivo de discussão: Miguel Franco, Otaviano Lima, o da Sociedade de Peixes Salgados, o cegueta João Ribeiro, de Petrolina, banqueiro de bicho e agiota?
Quase nonagenária, dona Didina tinha por única companhia uma antiga cria da família, pouco mais moça que ela: os cabelos brancos e ralos da patroa, a carapinha alva e espessa da criada, sinhá Marocas, duas almas do outro mundo vagando no casarão mal-assombrado. Havia quem afirmasse serem irmãs por parte de pai -comentar a vida alheia, sem dúvida o esporte favorito dos vizinhos em Água Brusca, línguas afiadas, imaginação solta, benza Deus!, poços de veneno, falta do que fazer, arte de matar o tempo.
Breve notícia histórica da apostasia universal ocorrido em Água Brusca, burgo do médio São Francisco, na década de 20 ou de como papa-hóstias e frei-bodes se enfrentaram em guerra das seitas cristãs, quando o bispo e o coronel se estranharam no exercício do poder feudal ou "Não me venhas de borzeguins ao leito" ou ainda "Se Paris vale u'a missa, quantos cultos valerá a xoxota de Astrud?".



Texto Anterior: Web traz pouca informação sobre autor
Próximo Texto: "Bóris, o Vermelho"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.