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"KEROUAC"
Bortolotto exalta a amargurada solidão dos anônimos
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
É preciso que se saiba: há alguém se expondo despudoradamente em um palco da cidade, na peça "Kerouac". Mas que
não se entenda por aí que se trata
de um desses engodos autocomplacentes em que o ator impõe
seus próprios problemas ao público, que ainda tem que pagar
por isso.
Não: a trajetória exposta é a de
Jack Kerouac (1922-1969), o mítico cronista da geração beat, que
em "On the Road" (Na Estrada,
1957) narrou sua travessia pela
América comungando a solidão
dos anônimos.
E apesar da intensa entrega a esse quase heróico Ulisses da sarjeta, o ator nunca sai da precisa
marca que o diretor lhe propôs,
nem se deixa dominar por uma
descarga de patético: muda de
tom quando preciso, saltando do
sarcasmo à confissão de fragilidade, misturando cansaço com indignação.
Essa elegante direção de Fauzi
Arap, precisa e invisível, serve
com desenvoltura ao texto de
Maurício Arruda de Mendonça,
que, embora endosse a indignação de Kerouac, não hesita em expor seu lado menos brilhante.
Com a mesma ênfase, o vemos
afirmar seu patriotismo bélico,
seu anti-semitismo, sua homofobia. É fundamental não transformar aquele a quem se admira em
ídolo irretocável.
O valor de Jack Kerouac é o de
se colocar por inteiro em cada
afirmação, não o de afirmar sempre verdades.
Frágil, a poucos dias de sua
morte, rezando para largar o álcool, cuidando da mãe inválida e
insultando os admiradores e velhos amigos, ama-se o autor por
sua fraqueza, não por seu mito.
E ao passar em círculo vicioso
pelos "altares" mínimos do cenário, como a escrivaninha-trabalho, o sofá-viagem, a penteadeira-mãe, o altar-bebida, sem perder o
realismo do tom, é como um ritual de despedida a coreografia
que esse ator faz.
Esse ator, é preciso dizer agora,
é Mário Bortolotto, da companhia
Cemitério de Automóveis. Evitou-se dizer seu nome neste texto
até agora porque ele vem se tornando ele mesmo um personagem, por mérito de estrada, uma
estrada paralela ao de Kerouac, ao
colecionar em suas peças retratos
dos amigos de geração.
E se o público pressente a cada
depoimento uma confissão pessoal de Bortolotto, na amargura
da fama sem fortuna, no orgulho
de viver intensamente cada momento, o autor nunca passa na
frente do ator.
Bortolotto é um grande ator, e
seria vital para sua geração mesmo que nunca tivesse escrito seus
textos.
Porque, como Kerouac, coloca-se sem pudor em cada frase, em
cada gesto. Pode se discordar de
seu tom e de seus temas, mas nunca duvidar de sua autenticidade.
No palco, na pele de seu ídolo,
finge que é dor a dor que sente, e
nunca perde o prumo.
Mário Bortollo expõe Jack Kerouac, Jack Kerouac expõe Mário
Bortolotto e, nessa entrega, todos
ganham.
Kerouac
Texto: Maurício Arruda Mendonça
Direção: Fauzi Arap
Com: Mário Bortolotto
Onde: Centro Cultural São Paulo - sala
Paulo Emílio (r. Vergueiro, 1.000, SP, tel.
0/xx/ 11/3277-3611)
Quando: sex. e sáb. (21h); dom. (20h);
até 31/8
Quanto: R$ 12
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