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CONTARDO CALLIGARIS
O que é um psicoterapeuta?
Volta e meia, me perguntam: "Por que pagar a um
profissional, se posso conversar de
graça com o pastor ou com a
mãe-de-santo? Não é lógico que
os amigos do peito me entendam
melhor que um desconhecido?
Qual é a diferença entre um psicoterapeuta e um padre que escuta, aconselha e pode nos absolver
dos pecados? ".
A diferença é simples: o psicoterapeuta é formado em (alguma)
psicoterapia, os outros não. Os interlocutores insistem: formado
como?
Aqui, uma distinção. Algumas
terapias, como as comportamentais (especialmente eficazes na
cura das fobias), requerem do terapeuta que aprenda e treine
exaustivamente técnicas que possam mudar a conduta que atrapalha o paciente.
Outras terapias intervêm na dinâmica das motivações conscientes ou inconscientes de quem sofre
(a psicanálise é uma delas). Aqui
a formação pede que o terapeuta
se submeta ao mesmo processo
que é proposto a seus pacientes.
Mais: pede que, de alguma forma,
ele permaneça sempre nesse processo. O psicanalista, por exemplo, não pára de analisar-se. É
uma precaução: tenta-se evitar
que interfiram nas curas motivações do terapeuta que ele mesmo
ignoraria. Mas há outra razão: o
entendimento das motivações dos
outros é proporcional ao entendimento de nós mesmos que temos
a coragem de encarar. O terapeuta é como um cirurgião que, ao
operar, praticasse uma vivissecção em seu próprio corpo para reconhecer melhor os órgãos internos do paciente.
Volto às perguntas iniciais. Claro, são pequenas investidas que
evocam as declarações de amor
do jardim-de-infância, quando
puxávamos o cabelo dos colegas
para que nos dessem atenção. Essa maneira infantil de provocar
ou ferir o outro para lhe oferecer e
pedir amor tem futuro. Aflige o
adolescente para quem decepcionar os pais é o jeito de esconder (e
dizer) um afeto do qual ele se envergonha, porque confirmaria
sua dependência. E há casais que
vivem na guerrilha, ambos transformando sua dificuldade para
demandar amor ou para ser
amados num cotidiano de ataques mesquinhos.
Quase sempre a coisa começa
com um drama nos primeiros
anos de vida: um pai que manifesta seu cuidado só xingando ou
uma mãe que acaricia com a esquerda e bate com a direita. Sobra uma incerteza nefasta: qual é
a prova do amor, carinho ou chicotada (real e metafórica)?
Ora, posso ler essa interpretação
banal num livro ou numa coluna
de jornal. Mas só a "conheço"
porque, durante anos, tentei entender como era possível que, na
infância, eu acordasse pasmo e
angustiado com sonhos em que
era atormentado por adultos sorridentes.
Esse exemplo é benigno. Qualquer terapeuta está disposto a encontrar dentro de si inquietações
mais turvas e cicatrizes mais supuradas. Pois desses encontros
depende sua capacidade de escutar.
Keith Ablow é um psiquiatra e
terapeuta de Boston, EUA. Escreve romances que já comentei e
que deveriam ser leitura obrigatória nos cursos de psicologia clínica. O último é "Psycho-Path"
(psicopata ou caminho da psique). Um dos personagens é um
psiquiatra infantil, genial e
enlouquecido. Um dia (a revelação deste episódio menor não estragará a leitura), ele atende um
menino vítima de abusos físicos,
mas decidido a não denunciar os
pais. O psiquiatra consegue ganhar a confiança da criança e
descobre que o abusador é a mãe,
enquanto o pai assiste passivo.
Numa sessão milagrosa, ele tenta
levar o pai a situar-se do lado do
menino. Convencido de ter conseguido, manda a criança para casa sob os cuidados paternos. No
dia seguinte, a mãe assassina o
menino diante do pai, mais uma
vez silencioso. O psiquiatra, como
lhe grita na cara uma colega, condenou o menino por falta de vivissecção. Ele "esqueceu" que a
raiz de sua própria loucura estava justamente na covardia de um
pai que nunca soubera protegê-lo
na infância. O menino foi ao matadouro porque o terapeuta quis
emendar a tragédia de sua própria vida acreditando num final
feliz para seu paciente.
Romanceado? Nem tanto. As
apostas em muitas curas não são
menos extremas.
Não estranha que os terapeutas
(ao menos os psicanalistas, que
conheço melhor) mostrem ao
mundo, frequentemente, uma face de desoladora normalidade social. Ou que a história institucional da psicanálise se pareça com a
crônica de um clube de notáveis
de província, preocupados com o
lugar que lhes é reservado no banquete anual. É uma compensação
compreensível: o exercício de
uma terapia dinâmica implica,
para o terapeuta, um esforço que
beira a insanidade mental e consiste em habitar os porões em que
ele encontra suas verdades e, com
elas, as verdades de seus pacientes.
PS: Meses atrás, uma igreja
evangélica decidiu tornar-se escola de psicanálise e tentou promover no Congresso uma lei pela
qual ela teria a autoridade nacional para outorgar o "título" de
psicanalista. Fora o fato de psicanalista estar mais para rodapé
que para título, é certo que um
cristão pode perfeitamente ser
psicanalista: pede-se apenas que
ouse encarar sua fé como um dos
demônios de sua história.
Mas uma igreja não pode ser
uma instituição de ensino de psicoterapia, pois formar terapeutas
é o exato contrário de propagar
uma crença.
ccalligari@uol.com.br
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