São Paulo, sábado, 07 de agosto de 2004

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"POR UM FIO"

Mais do que pacientes e personagens, Drauzio Varella cria um desfile fascinante de pessoas, em 35 "causos"

Leitura se mostra prazerosa e acabrunhante

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Drauzio Varella é um camaleão, e dos bons. Troca de cor sem esforço e sem deixar de lagartear-se na tepidez do que se poderia chamar de temperamento brasileiro, se é que algo assim de fato existe.
Este "Por um Fio", por exemplo, chega envolto na bruma cinzenta da morte e do desengano, mas o médico firme e compadecido -como deveriam ser todos os médicos- ressurge na pele de escritor para revelar o brilho fugidio de lucidez que mesmo as situações-limite da saúde podem propiciar. Como em "Estação Carandiru", ainda que embebidas em uma sordidez orgânica e fisiológica, suas páginas apresentam um desfile fascinante de pessoas, mais do que pacientes ou personagens.
São 35 casos, ou melhor, "causos", reunidos ao longo de uma carreira construída no convívio com o câncer e com a Aids, vale dizer, com dezenas, centenas de pacientes terminais. E algumas surpresas.
Drauzio Varella procura tirar grandes lições dessa proximidade com a doença fatal (corajosamente buscada e enfrentada por ele, à diferença de tantos de seus colegas de profissão). Os relatos transpiram mensagens espirituais, elevadas e tocantes. O médico não se constrange, por exemplo, em registrar que se afeiçoava e até se tornava amigo de pacientes que iriam morrer. Diz ter ficado desconcertado com a capacidade de muitas das pessoas que assistiu, nas semanas e nos meses finais de vida, para encontrar serenidade e redescobrir prazeres -tudo muito pequeno e fugaz, é verdade, mas exponencialmente realçado pelo contexto da perda e da desaparição iminentes.
De tanto ser confrontado com a imprevisibilidade das reações diante da vida que se esvai, conclui ser impossível extrair-lhe daí algum sentido, como sonhava o jovem estudante de medicina, coisa que resume numa frase perigosamente próxima das pílulas de sabedoria que proliferam pelas livrarias: "Precisei ficar velho para compreender que esse dia jamais chegará, porque a vida não tem sentido nenhum; nós é que insistimos diariamente em atribuir um significado a ela".
Dito de outro modo, Drauzio Varella não é um Oliver Sacks -nem pretende ser. As reflexões mais elevadas que pontuam a obra comparecem como uma espuma que pouco ou nada prejudica o movimento irresistível das ondas de pura singularidade que varrem seus casos. É aí, na individualidade irredutível da biografia de seus pacientes (e das suas próprias reações), que o livro do médico-escritor fervilha.
Os próprios títulos dos 35 relatos já denunciam a paixão pelo idiossincrático e a atenção às palavras: Mrs. Parcell, Seu Nino, A Herança, Dr. Sérgio, Idishe Mamme, Lucy e o Marido Inglês... Não há aí espaço para grandezas como o significado da vida ou da morte, somente para pessoas incríveis e anônimas, habilmente encapsuladas na reconstituição de trejeitos, tiradas, estilos de vestir, olhar e morrer, bigodes, mágoas.
Drauzio Varella parece capaz de não se esquecer de nada e de tudo perdoar, retratando cada pessoa e tratando cada paciente como um ser único, todos dados a momentos fulgurantes que ele tem a delicadeza de consagrar postumamente. Como a perspicácia rural de seu João: "Há coisas que encantam o olhar do homem: montanha ao longe, fogo crepitante, água corrente, tela de televisão". Ou, então, a placidez reconquistada pelo colega mais velho que se descobre portador de um câncer de próstata: "Era tão ansioso que chegava a puxar a descarga antes de terminar de urinar".
Impossível não sorrir nessas passagens, ainda que as narrativas sejam de morte e sofrimento. Mas Drauzio Varella é camaleão, não humorista. Seu sorriso é o do médico que se entrega, com o doente, a um instante de resgate da própria humanidade, na hora em que ela se esgarça em dor e abjeção. Vem, por isso, tingido com semitons de melancolia -e só ocasionalmente de tristeza crua e um pouco destoante, como no relato que fecha o livro (Meu Irmão).
"Por um Fio" é um volume de leitura a um só tempo prazerosa e dolorida, ligeira e acabrunhante, necessária para lembrar a todos -médicos, escritores ou não, e pacientes passados, presentes e futuros- que mesmo o que não se pode remediar pode ao menos ser tratado com um pouco de graça.


Por um Fio
    
Autor: Drauzio Varella
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (224 págs.)



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