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"POR UM FIO"
Mais do que pacientes e personagens, Drauzio Varella cria um desfile fascinante de pessoas, em 35 "causos"
Leitura se mostra prazerosa e acabrunhante
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
Drauzio Varella é um camaleão, e dos bons. Troca de
cor sem esforço e sem deixar de
lagartear-se na tepidez do que se
poderia chamar de temperamento brasileiro, se é que algo assim
de fato existe.
Este "Por um Fio", por exemplo, chega envolto na bruma cinzenta da morte e do desengano,
mas o médico firme e compadecido -como deveriam ser todos os
médicos- ressurge na pele de escritor para revelar o brilho fugidio
de lucidez que mesmo as situações-limite da saúde podem propiciar. Como em "Estação Carandiru", ainda que embebidas em
uma sordidez orgânica e fisiológica, suas páginas apresentam um
desfile fascinante de pessoas, mais
do que pacientes ou personagens.
São 35 casos, ou melhor, "causos", reunidos ao longo de uma
carreira construída no convívio
com o câncer e com a Aids, vale
dizer, com dezenas, centenas de
pacientes terminais. E algumas
surpresas.
Drauzio Varella procura tirar
grandes lições dessa proximidade
com a doença fatal (corajosamente buscada e enfrentada por ele, à
diferença de tantos de seus colegas de profissão). Os relatos transpiram mensagens espirituais, elevadas e tocantes. O médico não se
constrange, por exemplo, em registrar que se afeiçoava e até se
tornava amigo de pacientes que
iriam morrer. Diz ter ficado desconcertado com a capacidade de
muitas das pessoas que assistiu,
nas semanas e nos meses finais de
vida, para encontrar serenidade e
redescobrir prazeres -tudo muito pequeno e fugaz, é verdade,
mas exponencialmente realçado
pelo contexto da perda e da desaparição iminentes.
De tanto ser confrontado com a
imprevisibilidade das reações
diante da vida que se esvai, conclui ser impossível extrair-lhe daí
algum sentido, como sonhava o
jovem estudante de medicina,
coisa que resume numa frase perigosamente próxima das pílulas
de sabedoria que proliferam pelas
livrarias: "Precisei ficar velho para
compreender que esse dia jamais
chegará, porque a vida não tem
sentido nenhum; nós é que insistimos diariamente em atribuir
um significado a ela".
Dito de outro modo, Drauzio
Varella não é um Oliver Sacks
-nem pretende ser. As reflexões
mais elevadas que pontuam a
obra comparecem como uma espuma que pouco ou nada prejudica o movimento irresistível das
ondas de pura singularidade que
varrem seus casos. É aí, na individualidade irredutível da biografia
de seus pacientes (e das suas próprias reações), que o livro do médico-escritor fervilha.
Os próprios títulos dos 35 relatos já denunciam a paixão pelo
idiossincrático e a atenção às palavras: Mrs. Parcell, Seu Nino, A
Herança, Dr. Sérgio, Idishe Mamme, Lucy e o Marido Inglês... Não
há aí espaço para grandezas como
o significado da vida ou da morte,
somente para pessoas incríveis e
anônimas, habilmente encapsuladas na reconstituição de trejeitos,
tiradas, estilos de vestir, olhar e
morrer, bigodes, mágoas.
Drauzio Varella parece capaz de
não se esquecer de nada e de tudo
perdoar, retratando cada pessoa e
tratando cada paciente como um
ser único, todos dados a momentos fulgurantes que ele tem a delicadeza de consagrar postumamente. Como a perspicácia rural
de seu João: "Há coisas que encantam o olhar do homem: montanha ao longe, fogo crepitante,
água corrente, tela de televisão".
Ou, então, a placidez reconquistada pelo colega mais velho que se
descobre portador de um câncer
de próstata: "Era tão ansioso que
chegava a puxar a descarga antes
de terminar de urinar".
Impossível não sorrir nessas
passagens, ainda que as narrativas sejam de morte e sofrimento.
Mas Drauzio Varella é camaleão,
não humorista. Seu sorriso é o do
médico que se entrega, com o
doente, a um instante de resgate
da própria humanidade, na hora
em que ela se esgarça em dor e abjeção. Vem, por isso, tingido com
semitons de melancolia -e só
ocasionalmente de tristeza crua e
um pouco destoante, como no relato que fecha o livro (Meu Irmão).
"Por um Fio" é um volume de
leitura a um só tempo prazerosa e
dolorida, ligeira e acabrunhante,
necessária para lembrar a todos
-médicos, escritores ou não, e
pacientes passados, presentes e
futuros- que mesmo o que não
se pode remediar pode ao menos
ser tratado com um pouco de graça.
Por um Fio
Autor: Drauzio Varella
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (224 págs.)
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