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RODAPÉ
A epopéia da abjeção de Céline
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"De Castelo em Castelo", livro de 1957 que acaba de
ser lançado pela Companhia das
Letras, é o primeiro volume da
"trilogia alemã" de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), composta ainda por "Norte" (romance de
1960 publicado pela Nova Fronteira) e pelo póstumo "Rigodon"
(inédito no Brasil).
Ao contrário de "Viagem ao
Fim da Noite" (seu primeiro romance) ou "Morte a Crédito", que
são narrativas estritamente ficcionais, a trilogia seria incompreensível sem algumas informações
biográficas. No caso, uma biografia explosiva, responsável pelo
misto de fascínio e repulsa que a
obra de Céline provoca.
Pois esse médico dos subúrbios
parisienses, que se tornara célebre
entre a intelectualidade com seu
livro de estréia (traduzido para o
russo por Elsa Triolet, mulher do
surrealista Louis Aragon), escreveu a partir de 1937 quatro panfletos que iriam transformar sua vida numa epopéia da abjeção.
Primeiramente, "Mea Culpa",
libelo anticomunista redigido
após viagem à União Soviética.
Em seguida, três manifestos violentamente anti-semitas ("Bagatelles pour un Massacre", "L'École
des Cadavres" e "Les Beaux
Draps") publicados às vésperas
da "solução final" que levou milhões de judeus aos campos de extermínio nazistas.
Nada mais natural que, ao final
da Segunda Guerra, Céline se visse obrigado a fugir da França, rumando pela Alemanha destruída
em direção à Dinamarca, onde
havia depositado dinheiro de seus
direitos autorais e onde seria preso com a mulher, Lucette Destouches (sobrenome verdadeiro do
escritor).
É esse o tema da trilogia: uma
viagem ao fundo da ignomínia,
cuja primeira estação é "De Castelo em Castelo". O título se refere
ao castelo de Sigmaringen, na Baviera, onde os nazistas alojam o
governo colaboracionista do general Pétain e uma choldra sarnenta de "generais engalanados,
collabôs esfarrapados, empregadinhas espiãs, altivas ministras,
moribundos nos catres do "Fidelis'" ("collabo" é abreviação francesa para "colaboracionista"; Fidelis é o hospital improvisado em
que o dr. Céline atende doentes
em fuga).
Não há propriamente ação no
livro, apenas uma sucessão de encontros com figuras sinistras, inspiradas em personagens reais, como Otto Abetz (embaixador do 3º
Reich na França) ou o comandante Raumnitz (casado com uma
mulher de origem libanesa
-"carnuda e odalisca"- e com
uma filha que propicia comentários racistas do narrador).
Enquanto as "fortalezas voadoras" da RAF devastam a Alemanha (que ele chama desdenhosamente de Fritzlândia), Céline vocifera, xinga, agoniza em sua sintaxe peculiar, com frases espasmódicas, separadas por reticências, fazendo com que cada palavra seja um soluço de dor e escárnio. Entretanto, não há qualquer
traço de culpa nesse narrador obsedado por dinheiro, que só se enternece com animais ou doentes e
para quem nazistas e aliados são
igualmente carniceiros covardes.
Mas se "De Castelo em Castelo"
é um teatro de opereta em que se
encena o espetáculo da culpabilidade universal, por que Céline
aderiu tão docilmente ao credo
nazista? Se todos são réus de antemão condenados, por que esse escritor sofisticado, considerado
uma espécie de Proust da ralé,
abraçou a vulgaridade racista de
considerar o judeu um conspirador?
Esse romance de autoflagelação
é uma resposta (embora não seja
uma justificativa para sua patologia moral): Céline utilizou a acusação para se fazer culpado, cancelando assim a salvaguarda do
escritor como instância que julga
o mundo de fora. Só assim esse arquiteto da destruição poderia falar de seus pares, os intelectuais
parisienses que para ele eram o
supra-sumo da presunção (e que
ele odiava tanto quanto os comissários da Gestapo).
Finalmente, é imprescindível
destacar o trabalho extraordinário da tradutora Rosa Freire d'Aguiar, que, além de enfrentar brilhantemente as dificuldades da
prosa de Céline, criou um glossário que explica as várias referências cifradas que o escrito faz a
personalidades da vida intelectual
européia como Sartre, Jean Paulhan e Gaston Gallimard.
De Castelo em Castelo
Autor: Louis-Ferdinand Céline
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 52 (440 págs.)
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