São Paulo, sábado, 07 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

A epopéia da abjeção de Céline

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"De Castelo em Castelo", livro de 1957 que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, é o primeiro volume da "trilogia alemã" de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), composta ainda por "Norte" (romance de 1960 publicado pela Nova Fronteira) e pelo póstumo "Rigodon" (inédito no Brasil).
Ao contrário de "Viagem ao Fim da Noite" (seu primeiro romance) ou "Morte a Crédito", que são narrativas estritamente ficcionais, a trilogia seria incompreensível sem algumas informações biográficas. No caso, uma biografia explosiva, responsável pelo misto de fascínio e repulsa que a obra de Céline provoca.
Pois esse médico dos subúrbios parisienses, que se tornara célebre entre a intelectualidade com seu livro de estréia (traduzido para o russo por Elsa Triolet, mulher do surrealista Louis Aragon), escreveu a partir de 1937 quatro panfletos que iriam transformar sua vida numa epopéia da abjeção.
Primeiramente, "Mea Culpa", libelo anticomunista redigido após viagem à União Soviética. Em seguida, três manifestos violentamente anti-semitas ("Bagatelles pour un Massacre", "L'École des Cadavres" e "Les Beaux Draps") publicados às vésperas da "solução final" que levou milhões de judeus aos campos de extermínio nazistas.
Nada mais natural que, ao final da Segunda Guerra, Céline se visse obrigado a fugir da França, rumando pela Alemanha destruída em direção à Dinamarca, onde havia depositado dinheiro de seus direitos autorais e onde seria preso com a mulher, Lucette Destouches (sobrenome verdadeiro do escritor).
É esse o tema da trilogia: uma viagem ao fundo da ignomínia, cuja primeira estação é "De Castelo em Castelo". O título se refere ao castelo de Sigmaringen, na Baviera, onde os nazistas alojam o governo colaboracionista do general Pétain e uma choldra sarnenta de "generais engalanados, collabôs esfarrapados, empregadinhas espiãs, altivas ministras, moribundos nos catres do "Fidelis'" ("collabo" é abreviação francesa para "colaboracionista"; Fidelis é o hospital improvisado em que o dr. Céline atende doentes em fuga).
Não há propriamente ação no livro, apenas uma sucessão de encontros com figuras sinistras, inspiradas em personagens reais, como Otto Abetz (embaixador do 3º Reich na França) ou o comandante Raumnitz (casado com uma mulher de origem libanesa -"carnuda e odalisca"- e com uma filha que propicia comentários racistas do narrador).
Enquanto as "fortalezas voadoras" da RAF devastam a Alemanha (que ele chama desdenhosamente de Fritzlândia), Céline vocifera, xinga, agoniza em sua sintaxe peculiar, com frases espasmódicas, separadas por reticências, fazendo com que cada palavra seja um soluço de dor e escárnio. Entretanto, não há qualquer traço de culpa nesse narrador obsedado por dinheiro, que só se enternece com animais ou doentes e para quem nazistas e aliados são igualmente carniceiros covardes.
Mas se "De Castelo em Castelo" é um teatro de opereta em que se encena o espetáculo da culpabilidade universal, por que Céline aderiu tão docilmente ao credo nazista? Se todos são réus de antemão condenados, por que esse escritor sofisticado, considerado uma espécie de Proust da ralé, abraçou a vulgaridade racista de considerar o judeu um conspirador?
Esse romance de autoflagelação é uma resposta (embora não seja uma justificativa para sua patologia moral): Céline utilizou a acusação para se fazer culpado, cancelando assim a salvaguarda do escritor como instância que julga o mundo de fora. Só assim esse arquiteto da destruição poderia falar de seus pares, os intelectuais parisienses que para ele eram o supra-sumo da presunção (e que ele odiava tanto quanto os comissários da Gestapo).
Finalmente, é imprescindível destacar o trabalho extraordinário da tradutora Rosa Freire d'Aguiar, que, além de enfrentar brilhantemente as dificuldades da prosa de Céline, criou um glossário que explica as várias referências cifradas que o escrito faz a personalidades da vida intelectual européia como Sartre, Jean Paulhan e Gaston Gallimard.


De Castelo em Castelo
    
Autor: Louis-Ferdinand Céline
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 52 (440 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Panorâmica - Literatura 1: Sai resultado do Jabuti categoria Infantil/Juvenil
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.