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TEATRO
Bete Coelho monta texto de Caryl Churchill que passa pela clonagem e deságua na crise da família contemporânea
Peça tira relação pai-filho do tubo de ensaio
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Você dobra a esquina e ele está
lá, como um "espelho, espelho
meu". Mas "ele" são mais 19, mais
do mesmo de você.
Não é fácil caminhar pelo labirinto que a dramaturga inglesa
Caryl Churchill, 65, constrói num
dos seus textos mais recentes, "A
Number" (2002). "Quando o li
pela primeira vez, achei-o esquisitíssimo, com muitas frases estruturadas sem ponto ou vírgula,
mas foi justamente essa forma
verbal solta que deu liberdade para a encenação e para a interpretação", diz Bete Coelho, 37, diretora
da primeira montagem brasileira
da peça, em cartaz a partir de hoje
no Sesc Belenzinho, São Paulo.
O sujeito do primeiro parágrafo
não é você, mas o filho clonado
por um homem desnaturado, violento, que abandonou seu filho legítimo de quatro anos num orfanato, por considerá-lo agressivo,
rebelde, e o "substituiu" por um
filho idealizado, dócil, passivo. O
que o pai não esperava é que o laboratório espalhasse por aí, inadvertidamente, outras cópias do
dito cujo criado graças aos avanços da ciência e da tecnologia. É
nesse contexto que se passa a
ação, 30 anos depois.
"Um Número" pode sugerir
discussão sobre os rumos da biotecnologia, processo do qual a humanidade tem se pautado nos últimos tempos, com todas as implicações éticas em jogo, mas a
peça deixa em segundo plano esse
viés científico (o texto sequer
menciona a palavra "clonagem"
ou variantes). Churchill se apropria dessa onda no laboratório de
ensaio do mundo contemporâneo e traz à luz um tema ancestral:
a relação pai-filho. (Vem a calhar
com a data de amanhã.)
"Os sentimentos de amor e de
ódio expressados pelos dois lados,
pai e filho, reafirmam a tese de
que a personalidade do ser humano é moldada de acordo com o
ambiente social em que cresce, e
não conforme os traços biológicos, por exemplo", diz o ator Marco Antônio Pâmio, 42. Ele interpreta o filho original e o clone.
Originalmente, Churchill prevê
dois atores, um para os papéis de
filho e outro para o pai, Salter, 60,
personagem interpretado por
Luiz Damasceno. "De certa forma, esse homem reconhece que
perdeu ao final. Confessa saudades do filho e vê os clones como
estranhos", diz Damasceno, 63.
Bete Coelho acrescentou um coro de clones, massa humana vestida de preto e chapéu. Mais 12 atores "à figura e semelhança" dos
papéis de Pâmio, o que deve traduzir visualmente o redemoinho
que vai pelas cabeças.
"A gente acaba se identificando
como débeis, covardes, diante da
terrível metáfora que a autora
constrói sobre o medo do diferente", diz Coelho, que atuou em
"FrankensteinS" (2002), outro
embrião do embate criador-criatura. "Apesar dos avanços da
ciência, nossos corações e mentes
não processam com o mesmo ritmo, soam retrógrados."
Também para o cenário que pedia "o lugar onde Salter mora", a
diretora ampliou a concepção para "um lugar de trânsito, não-estabelecido, talvez uma estação de
metrô, território do homem e da
máquina". Ela assina a cenografia
com Cássio Brasil. Para certo clima de suspense e filme noir que
vislumbra no drama, Coelho contrapõe um gestual que remete ao
humor sutil de um Jacques Tati
(1908-82), o ator francês.
Selecionada para o 8º Cultura
Inglesa Festival, a montagem de
"Um Número" pontua, antes de
tudo, um projeto de atores. Coelho já trabalhou com Pâmio
("Nelson 2 Rodrigues", dirigido
por Antunes Filho). Pâmio vem
de parcerias recentes com Damasceno ("O Senhor Paul", por
Sérgio Ferrara). E Damasceno integrava a cia. de Ópera Seca com
Coelho, sempre sob direção de
Gerald Thomas, nos anos 80 e 90.
Sobre a dramaturgia de base social e política da inglesa Caryl
Churchill, ela é pouco conhecida
aqui. A autora é ligada ao Royal
Court Theatre desde os anos 70.
Cerca de dois anos atrás, o diretor
Roberto Lage montou "Far
Away" (Distante), no Teatro do
Sesi. Em 1983, houve uma montagem carioca de "Cloud Nine"
(Numa Nice), de André Adler.
UM NÚMERO. De: Caryl Churchill.
Tradução: Marco Aurélio Nunes. Direção:
Bete Coelho. Iluminação: Wagner Freire.
Trilha sonora: Luciano Monson. Com:
Luiz Damasceno, Marco Antônio Pâmio,
Charles Nahra, Edson Diaciunas, Rodrigo
Audi, Wagner Miranda e outros. Onde:
Sesc Belenzinho - galpão 2 (av. Álvaro
Ramos, 915, tel. 0/xx/11/6602-3700).
Quando: estréia hoje, às 21h; sáb. e dom.,
às 21h. Quanto: R$ 15.
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