São Paulo, sábado, 07 de agosto de 2004

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TEATRO

Bete Coelho monta texto de Caryl Churchill que passa pela clonagem e deságua na crise da família contemporânea

Peça tira relação pai-filho do tubo de ensaio

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Você dobra a esquina e ele está lá, como um "espelho, espelho meu". Mas "ele" são mais 19, mais do mesmo de você.
Não é fácil caminhar pelo labirinto que a dramaturga inglesa Caryl Churchill, 65, constrói num dos seus textos mais recentes, "A Number" (2002). "Quando o li pela primeira vez, achei-o esquisitíssimo, com muitas frases estruturadas sem ponto ou vírgula, mas foi justamente essa forma verbal solta que deu liberdade para a encenação e para a interpretação", diz Bete Coelho, 37, diretora da primeira montagem brasileira da peça, em cartaz a partir de hoje no Sesc Belenzinho, São Paulo.
O sujeito do primeiro parágrafo não é você, mas o filho clonado por um homem desnaturado, violento, que abandonou seu filho legítimo de quatro anos num orfanato, por considerá-lo agressivo, rebelde, e o "substituiu" por um filho idealizado, dócil, passivo. O que o pai não esperava é que o laboratório espalhasse por aí, inadvertidamente, outras cópias do dito cujo criado graças aos avanços da ciência e da tecnologia. É nesse contexto que se passa a ação, 30 anos depois.
"Um Número" pode sugerir discussão sobre os rumos da biotecnologia, processo do qual a humanidade tem se pautado nos últimos tempos, com todas as implicações éticas em jogo, mas a peça deixa em segundo plano esse viés científico (o texto sequer menciona a palavra "clonagem" ou variantes). Churchill se apropria dessa onda no laboratório de ensaio do mundo contemporâneo e traz à luz um tema ancestral: a relação pai-filho. (Vem a calhar com a data de amanhã.)
"Os sentimentos de amor e de ódio expressados pelos dois lados, pai e filho, reafirmam a tese de que a personalidade do ser humano é moldada de acordo com o ambiente social em que cresce, e não conforme os traços biológicos, por exemplo", diz o ator Marco Antônio Pâmio, 42. Ele interpreta o filho original e o clone.
Originalmente, Churchill prevê dois atores, um para os papéis de filho e outro para o pai, Salter, 60, personagem interpretado por Luiz Damasceno. "De certa forma, esse homem reconhece que perdeu ao final. Confessa saudades do filho e vê os clones como estranhos", diz Damasceno, 63.
Bete Coelho acrescentou um coro de clones, massa humana vestida de preto e chapéu. Mais 12 atores "à figura e semelhança" dos papéis de Pâmio, o que deve traduzir visualmente o redemoinho que vai pelas cabeças.
"A gente acaba se identificando como débeis, covardes, diante da terrível metáfora que a autora constrói sobre o medo do diferente", diz Coelho, que atuou em "FrankensteinS" (2002), outro embrião do embate criador-criatura. "Apesar dos avanços da ciência, nossos corações e mentes não processam com o mesmo ritmo, soam retrógrados."
Também para o cenário que pedia "o lugar onde Salter mora", a diretora ampliou a concepção para "um lugar de trânsito, não-estabelecido, talvez uma estação de metrô, território do homem e da máquina". Ela assina a cenografia com Cássio Brasil. Para certo clima de suspense e filme noir que vislumbra no drama, Coelho contrapõe um gestual que remete ao humor sutil de um Jacques Tati (1908-82), o ator francês.
Selecionada para o 8º Cultura Inglesa Festival, a montagem de "Um Número" pontua, antes de tudo, um projeto de atores. Coelho já trabalhou com Pâmio ("Nelson 2 Rodrigues", dirigido por Antunes Filho). Pâmio vem de parcerias recentes com Damasceno ("O Senhor Paul", por Sérgio Ferrara). E Damasceno integrava a cia. de Ópera Seca com Coelho, sempre sob direção de Gerald Thomas, nos anos 80 e 90.
Sobre a dramaturgia de base social e política da inglesa Caryl Churchill, ela é pouco conhecida aqui. A autora é ligada ao Royal Court Theatre desde os anos 70. Cerca de dois anos atrás, o diretor Roberto Lage montou "Far Away" (Distante), no Teatro do Sesi. Em 1983, houve uma montagem carioca de "Cloud Nine" (Numa Nice), de André Adler.


UM NÚMERO. De: Caryl Churchill. Tradução: Marco Aurélio Nunes. Direção: Bete Coelho. Iluminação: Wagner Freire. Trilha sonora: Luciano Monson. Com: Luiz Damasceno, Marco Antônio Pâmio, Charles Nahra, Edson Diaciunas, Rodrigo Audi, Wagner Miranda e outros. Onde: Sesc Belenzinho - galpão 2 (av. Álvaro Ramos, 915, tel. 0/xx/11/6602-3700). Quando: estréia hoje, às 21h; sáb. e dom., às 21h. Quanto: R$ 15.


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