São Paulo, sexta, 7 de agosto de 1998

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Artista revoluciona o espaço e abole o desenho

da Reportagem Local

Curador da mostra "A Lição de Caravaggio", no Masp, Luiz Marques explica aqui questões fundamentais na produção artística do maneirista italiano, como a dissolução do espaço perspectivo, o uso da luz na determinação de um espaço pictórico e a importância de fundamentos teatrais nessa nova concepção de espaço e de personagens. (CF)

Folha - Em que pontos a pintura de Caravaggio avança na história da arte no século 17?
Luiz Marques -
Com Caravaggio, observa-se uma ruptura com a tradição maneirista de Michelângelo e Rafael, que haviam chegado a um impasse no final do século 16, por um excesso de sofisticação e de autoconsciência.
Podemos resumir os avanços de Caravaggio em três pontos básicos. O primeiro é uma nova concepção do espaço. O espaço pré-caravaggesco é fundado na perspectiva, fundado em uma estrutura geométrica pré-existente a partir da qual se organiza a cena.
Com Caravaggio, essa estrutura se dissolve e surge uma linha ideal que rasga o espaço na diagonalidade. O espaço é uma decorrência do gesto, da aparição do corpo na cena.
A segunda questão é o desaparecimento do desenho. Ele não pinta a partir de uma estrutura já dada. Ele pinta sobre a tela. Isso é fundamental, pois o Renascimento tinha em seu alicerce a noção do desenho como um postulado intelectual. O desenho era uma idéia, um projeto, um desenvolvimento intelectual da forma. Isso desaparece com Caravaggio.
O terceiro elemento que é fundamental é a questão da luz. Ela representa uma destruição da unidade da forma corpórea. A figura vai aparecer no espaço em função de um raio de luz que vai atravessá-la arbitrariamente, que vai jogar na sombra ou deixar em evidência aquilo que ela quiser.
Esses três elementos incidem sobre um mesmo ponto, que é o naturalismo. Há um desinteresse completo de Caravaggio pela codificação da forma e um ataque direto ao mundo visual existente.
O repertório de figuras sacras não vai mais aparecer como variação da estatuária antiga, como era o caso do Renascimento, mas como figuras do povo, das ruas.
Folha - Existe a lenda de que Caravaggio usava esses argumentos para sanar algumas deficiências suas, como não dominar a perspectiva, como pode ser visto em "A Ceia em Emaús", em Londres.
Marques -
De um lado, essa hipótese é viável na medida em que Caravaggio não tinha um treinamento acadêmico, além de um pequeno treinamento com Simone Peterzano, um pintor provinciano, e que se lança em Roma a partir desse treinamento incipiente.
Mas a questão é mais interessante se a colocarmos de outra forma. São exatamente os artistas que não detêm de forma absolutamente consumada um certo código que são capazes de formular uma outra pergunta.
Caravaggio não é o pintor acadêmico que rompe com a academia, mas um pintor que vem de um outro horizonte de experiências. Não se trata de uma incapacidade, mas da capacidade de se situar em uma outra perspectiva.
Folha - Existe algum desenvolvimento teatral no século 16 que possa ter influenciado o seu tipo de composição, com protagonistas dividindo com coadjuvantes partes fundamentais da cena?
Marques -
A influência do teatro é extremamente importante desde a segunda metade do século 16, por causa não apenas da multiplicação do teatro como prática de corte, mas também pela multiplicação dos comentários da "Arte Poética", de Aristóteles.
Eles começam por volta de 1540 e vão contaminar o imaginário da pintura e da literatura e criar o verdadeiro teatro do final do século 16 e início do século 17. O teatro está na ordem do dia e Caravaggio não vai escapar disso.
Mas o teatro do Renascimento coloca em primeiro plano a cenografia. No século 17 o que predomina é o teatro do personagem, como em Shakespeare ou Cervantes, que não se importavam com a cenografia. O que está em jogo é o monólogo do personagem, como em "Hamlet".
O naturalismo de Caravaggio tem que ser pensado dessa maneira. A noção de naturalismo não pode ser confundida com uma capacidade de imitar a natureza. O que deve ser observado é a enorme concentração naquilo que você não vê, que são os movimentos do afeto.
Folha - A vida conturbada de Caravaggio e todo o folclore que existe em torno de sua carreira não foram usados para evidenciar sua carreira em um período e legá-la ao esquecimento em outro?
Marques -
Essa vida aventurosa de Caravaggio não era uma exceção. A maioria dos artistas de via Marguta, via del Babuino e região eram delinquentes. Eles estavam constantemente nos registros policiais. Esse comportamento é típico do pintor romano naqueles anos. Eles matam mesmo. Brigam, metem a faca...
Caravaggio foi um personagem que ficou muito famosos e concentrou essa reputação de outsider, mas esse comportamento era típico dos artistas naqueles anos em Roma.
No século 17, o processo de retomada da ascensão social do artista, que havia decaído no final do século 16, vai contribuir para a fama de pintor maldito de Caravaggio, já que ele é um pintor que não se senta à mesa com os príncipes. Ele não é um homem cortês, como serão alguns artistas de gerações seguintes: Bernini, Cortona ou Poussin, que é um intelectual.
Embora ainda exista o tipo de artista boêmio, a ascensão do artista no período barroco vai fazer de Caravaggio uma figura maldita.
Folha - Quando e por que se deu a redescoberta de Caravaggio?
Marques -
Foi no começo do século 19, com Courbet, Géricault e Delacroix, pintores românticos e realistas admiradores de Caravaggio. A causa da redescoberta foi a mesma que causou seu nascimento: a crise de um sistema institucionalizado nas artes, que faz com que outsiders encontrem afinidades com artistas que estavam fora do sistema acadêmico.
Folha - Você dividiu a mostra em blocos dedicados ao caravaggismo em Roma, Nápoles e França. Essa escola não se desenvolveu na Espanha, já que Nápoles pertencia ao país na época?
Marques -
Há duas dimensões essenciais do caravaggismo internacional que não estão representadas: uma é a escola de Utrecht e a outra é o caravaggismo espanhol. As duas estiveram presentes recentemente em mostras na Pinacoteca.
O caravaggismo espanhol tem dois elos importantíssimos com a Itália: Orazio Borgiani e Bartolomeo Cavarozzi, dois caravaggescos de primeira ordem que vão para a Espanha. O Orazio Borgiani estará na mostra com um auto-retrato muito bonito.
Mesmo as primeiras obras de Zurbarán e Velázquez são de um caravaggismo evidente.
A escola de Utrecht não está presente na mostra, mas felizmente já foi vista na Pinacoteca.



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