São Paulo, Sábado, 07 de Agosto de 1999
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LIVRO/LANÇAMENTO
O Brasil que acabou

Roberto Schwarz reúne 22 ensaios em "Sequências Brasileiras", obra em que a idéia de "desagregação nacional" dá o tom

FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local



Não é profecia, mas um atestado de óbito. A idéia de que o Brasil teria um desenvolvimento autônomo e de que viria a ser uma nação socialmente integrada está se desmanchando no ar.
O diagnóstico é de Roberto Schwarz, um dos expoentes de uma geração de pensadores da USP que, desde os anos 60, procurou entender os descaminhos do desenvolvimento brasileiro e que, um dia, imaginou que ele seria possível. Alguns ainda acham que é -ou dizem que sim. É o caso do membro mais famoso do grupo, o sociólogo e presidente Fernando Henrique Cardoso.
Os argumentos de Schwarz estão dispersos ao longo de seu novo livro: "Sequências Brasileiras" (Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 24). Chega às livrarias na segunda-feira e será autografado pelo autor no dia 18, a partir das 18h30, na livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional). O título, alusivo, soa ufanista e evoca coisas como "As Bachianas Brasileiras". No fundo, esconde mais do que revela o conteúdo e as intenções do conjunto.
São 22 ensaios de assunto variado, além de um conto intitulado "Contra o Retrocesso", que está no final. Oito deles já foram publicados pela Folha (seis no caderno Mais!), alguns saíram em revistas especializadas, outros no exterior. A maioria dos textos é, portanto, quase inédita, sendo que há dois inteiramente novos: "Altos e Baixos da Atualidade de Brecht", o mais longo do livro, e "Os Sete Fôlegos de um Livro", sobre a "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido.
As "Sequências Brasileiras" de Roberto Schwarz apontam para aspectos estruturais da experiência histórica do país, em que a herança das relações coloniais tem papel decisivo.
Esse seria o fio subterrâneo do livro de Schwarz: perseguir, naquilo que analisa, a formalização de um conjunto de relações altamente problemático, incompatível com o padrão das nações modernas e ao mesmo tempo resultado da evolução do mundo moderno. Trata-se, em suma, de encontrar algo como a "forma do Brasil" e mostrar porque o país nunca foi (nem mais será) uma nação civilizada.
Quem acompanha o crítico já conhece o esquema que ele agora desdobra sobre o presente. Em relação a Machado de Assis (primeiro em "Ao Vencedor as Batatas", de 1977, e, depois, em "Um Mestre na Periferia do Capitalismo", de 1990) seu rendimento é notável, a ponto de certas pessoas atribuírem, com doses de ironia, mais genialidade e impertinência ao crítico que ao próprio escritor.
Na entrevista que segue, Schwarz responde às objeções que lhe fez recentemente a respeito de Machado o crítico Alfredo Bosi, ele próprio alvo de um ensaio. Comenta, pela primeira vez, o livro "Verdade Tropical", de Caetano Veloso, e faz uma análise surpreendente da canção "How Beautiful Could a Being Be", do disco "Livro", também de Veloso.
Schwarz não fala a respeito do governo de seu amigo de mais de 40 anos. Nem precisa. Basta ler seu livro, em que a idéia da "desagregação nacional" dá o tom e instrui o resto da análise.
Um exemplo: "A nação não vai se formar, as suas partes vão se desligar umas das outras, o setor "avançado" da sociedade brasileira já se integrou à dinâmica mais moderna da ordem internacional e deixará cair o resto. À vista da nação que não vai se integrar, o próprio processo formativo terá sido uma miragem que a bem do realismo é melhor abandonar".
Seria esse o ponto de fuga das sequências de um país que...

Folha - O seu livro contém perfis biográficos, crítica literária, balanços de época, crítica dos críticos, análise política e até um conto. Onde estão as "Sequências Brasileiras"?
Roberto Schwarz -
Os ensaios, mesmo quando tratam de Brecht ou de Kurz, dizem respeito ao Brasil. Não é por verdeamarelismo. Aprendi que ao aprofundar as questões, ao examiná-las nos termos da experiência recente, o ângulo brasileiro se configura.
A maneira, por exemplo, pela qual Brecht é e foi atual aqui mostra aspectos reais da obra dele, diferentes daqueles que se impuseram na Alemanha. É um capítulo da reelaboração do vanguardismo europeu na periferia do capitalismo. Universalização, se não for uma palavra vazia, é isto. Pode soar extravagante, mas não deixa de ser a desprovincianização do universalismo europeu.

Folha - Há algo análogo em relação às idéias de Robert Kurz?
Schwarz -
Sendo uma teoria abrangente do colapso da modernização, o livro dele se choca com a nossa imensa aspiração modernizadora, que tem fundamento estrutural no país e parece indescartável até segunda ordem. Cria-se um debate, para não dizer uma trombada, do maior interesse.

Folha - E as "sequências"?
Schwarz -
A palavra não está em sentido de cronologia, nem de sucessão simples, assim como o Brasil não está em sentido geográfico. A idéia é que a concatenação dos argumentos e das formas dramatiza, além de desdobrar, aspectos estruturais de nossa experiência histórica, em que a herança das relações coloniais entra de forma decisiva e meio recalcada.
As sequências estão num poema, num romance ou na arquitetura de um ensaio. Na lógica da formação de uma literatura nacional, nos passos da reflexão histórico-social e, sobretudo, no curso das coisas.

Folha - A herança colonial estaria presente em todas elas?
Schwarz -
A herança colonial que nos coube, com as suas desigualdades sacramentadas, é mais profunda e está mais presente do que temos o costume de reconhecer. A fração mais ou menos moderna do país alimenta a ilusão de não ter muito a ver com o assunto. Entretanto, basta examinar de perto as nossas obras significativas, os desempenhos ou os momentos cruciais do país, para descobrir que são essas questões que lhes imprimem a força, para o bem e para o mal.


"Da maneira como é cantada por Caetano, a canção "How Beautiful Could a Being Be" soa mais familiar, algo como o "cu da Bimbi", que fica sendo o verdadeiro "beautiful"; não deixa de ser uma passagem do Primeiro Mundo ao nosso"


Folha - Você estaria amarrando o artista e o intelectual brasileiro aos temas do atraso?
Schwarz -
Sobretudo em arte, onde a forma redimensiona tudo, não tem sentido recomendar temas. Os assuntos mais urgentes, tratados em espírito convencional, fazem figura lamentável. E os mais etéreos ou inesperados podem adquirir proximidade. Os ouvintes do último disco de Caetano terão reparado na faixa "How Beautiful Could a Being Be", em que o deslizamento da pronúncia e as muitas repetições da frase, um tanto remota, fazem com que o "could a being be" se transforme em algo mais familiar, como o "cu da Bimbi", que fica sendo o verdadeiro "beautiful".
Não deixa de ser uma passagem do Primeiro Mundo ao nosso, no caso com vantagem para o lado de cá, sem que as tensões entre o inglês e o brasileiro, o estrangeiro e o nacional, a expressão elevada e a familiar estivessem explícitas.

Folha - A propósito de Caetano Veloso, no ensaio sobre o Brecht há duas menções marginais a "Verdade Tropical", que resultam simpáticas. É a primeira vez que você fala desse livro, que desagradou a esquerda.
Schwarz -
Eu li "Verdade Tropical" com grande interesse, é um livro de peso para entender os anos 60 no Brasil. Tem envergadura intelectual, junta coisas difíceis de juntar, resume posições estéticas e posições políticas com muita acuidade, os retratos que traça são finos, é o trabalho de um intelectual com grande capacidade literária. O que se pode objetar ao livro é que o processo que ele mostra não leva às conclusões que ele tira. Estas são relativamente satisfeitas e complacentes com o ponto de chegada do período.
Caetano mostra bem que o que nossa vida cultural teve de mais vivo e profundo se deveu à radicalização democrática do populismo, com suas alianças de classe heterodoxas e pré-revolucionárias abrindo a imaginação dos interessados. As formas de talento artístico e de originalidade que o livro descreve se enraízam no pré-64, quando o Brasil estava colocando de maneira aguda e social os seus problemas. Esse é o chão de que Caetano se alimenta.
Entretanto, como o livro é em boa parte uma polêmica com a esquerda, a ênfase fica na depreciação dessas molas sociais, ainda que sejam as molas da imaginação dele e da vida cultural do período. Então, ao mesmo tempo que Caetano se beneficia das verdades democráticas do conflito que movimentou o Brasil até a abertura, ele as desqualifica, se alinha com a atenuação das contradições e mesmo aprova o seu desmanche no comercialismo. O movimento do livro é grande, contraditório, representativo e importante para o debate.

Folha - Voltando ao atraso, ele é o nosso destino?
Schwarz -
É claro que o escritor brasileiro não tem obrigação de tratar do atraso. Mas escrever bem, no sentido exigente da palavra, é não ser surdo, ou melhor, é ser aberto para a experiência histórica recolhida na linguagem, no caso a brasileira. O embotamento a respeito pode tomar inúmeras formas, como o tecnocratês, o bacharelismo, o padrão Globo, a fórmula comercial...
É um engano subalterno supor que as questões densas sejam as do mundo dito adiantado, ao passo que as nossas seriam ralas. A inaceitável estrutura de classes do país, bem como a nossa posição relativa no concerto das nações -o atraso pelo qual você perguntou- são desgraças, mas não são irrelevantes nem ultrapassadas. Se os nossos intelectuais não fossem tão ofuscados, haveria até o risco contrário, de um ufanismo da calamidade e de seus ensinamentos de ponta, inacessíveis aos cidadãos ingênuos das sociedades que pregam o liberalismo mas em que ainda existe a proteção social.

Folha - A ofuscação intelectual a que você se referiu não teria a ver com a atual pressão do "pensamento único"? Ou você não acredita que ela exista?
Schwarz -
Não estava pensando nisso, mas você deve ter razão. A crise do desenvolvimentismo havia gerado e até certo ponto generalizado uma visão crítica importante, para a qual havia conexão e realimentação recíproca entre as deformidades internas do país e as deformidades da ordem internacional. Hoje o quadro é outro e vivemos sob o signo do "ajuste" e da "atualização", um signo claramente regressivo do ponto de vista da plataforma intelectual anterior. Como as palavras indicam, trata-se de entrar na linha e de não criticar ou atrapalhar.
É certo que em âmbito internacional a imensa vitória do capital sobre os seus adversários sociais se completou através de um fogo de barragem ideológico. Nessas circunstâncias, a crítica passou a ser mal recebida. Esta entretanto é só a metade da missa. Em lugar de atribuirmos a nossa falta de repercussão à má vontade do adversário, que existe e seria surpreendente que não existisse, é preciso reconhecer a parte da perplexidade objetiva causada pela nova feição da economia, diante da qual a esquerda não sabe uma saída clara, sem prejuízo da justiça das objeções ao rumo das coisas. A impressão de pensamento único também decorre disso.

Folha - Feitas as contas e apesar dos seus esforços explicativos, a sua reputação na praça segue sendo a de "crítico sociológico", no mau sentido, obviamente.
Schwarz -
Esse rótulo colou e vai me acompanhar até a cova. Ele não é fácil de entender, embora a intenção depreciativa seja óbvia. A idéia é de que a boa crítica não se mistura à reflexão histórico-social. Mas será mesmo que a análise das formas é melhor quando não diz nada do mundo?
Os manifestos de Oswald não são uma visão histórico-social do Brasil? Mário não tinha idéias a respeito do país, como artista e como crítico? O culto joão-cabralino do despojamento não é uma proposta parapolítica? Os próprios concretistas, que gostam de desancar a crítica social, sempre tiveram teses nítidas sobre a época, teses pelas quais se pautavam disciplinadamente, como qualquer grupo que quer ocupar espaço e mudar as coisas. Seria um absurdo criticá-los por terem uma visão histórico-social do presente e de si mesmos. O problema não está aí, está na qualidade dessa visão, a que as obras, por seu lado, podem não corresponder.
Dito isso, é patente a superioridade dos críticos que circulam bem, sem contra-sensos e reduções forçadas, entre a discussão das formas artísticas e das formas sociais. Pense no interesse fulminante das análises de Walter Benjamin, de Adorno, e no Brasil, de Antonio Candido.

Folha - No último livro de Alfredo Bosi, "O Enigma do Olhar", há uma discussão longa da visão que a crítica social, que ele ataca em várias frentes, tem de Machado de Assis...
Schwarz -
As objeções do Bosi são de outra ordem, e não são as mesmas segundo o interlocutor. Li bem o livro anterior dele, "A Dialética da Colonização", onde impressiona o vigor com que a argumentação histórico-social, frequentemente de caráter marxista, é mobilizada contra o catolicismo oficial, para empurrar a igreja para a esquerda. Já quando Bosi discute o ateu Machado de Assis e os seus intérpretes materialistas, ele sente necessidade de algo mais, digamos, imaterial. São as contradições sintomáticas de um católico de esquerda que eu admiro.


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