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LIVRO/LANÇAMENTO
O Brasil que acabou
Roberto Schwarz reúne 22 ensaios em "Sequências Brasileiras", obra em que a idéia de "desagregação nacional" dá o tom
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
Não é profecia, mas um atestado de óbito. A idéia de que o Brasil teria um desenvolvimento autônomo e de que viria a ser uma
nação socialmente integrada está
se desmanchando no ar.
O diagnóstico é de Roberto
Schwarz, um dos expoentes de
uma geração de pensadores da
USP que, desde os anos 60, procurou entender os descaminhos
do desenvolvimento brasileiro e
que, um dia, imaginou que ele seria possível. Alguns ainda acham
que é -ou dizem que sim. É o caso do membro mais famoso do
grupo, o sociólogo e presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Os argumentos de Schwarz estão dispersos ao longo de seu novo livro: "Sequências Brasileiras"
(Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 24). Chega às livrarias na
segunda-feira e será autografado
pelo autor no dia 18, a partir das
18h30, na livraria Cultura (av.
Paulista, 2.073, Conjunto Nacional). O título, alusivo, soa ufanista
e evoca coisas como "As Bachianas Brasileiras". No fundo, esconde mais do que revela o conteúdo
e as intenções do conjunto.
São 22 ensaios de
assunto variado, além
de um conto intitulado "Contra o Retrocesso", que está no final. Oito deles já foram publicados pela
Folha (seis no caderno Mais!), alguns saíram em revistas especializadas, outros no
exterior. A maioria
dos textos é, portanto, quase inédita, sendo que há dois inteiramente novos: "Altos e Baixos da Atualidade de Brecht", o
mais longo do livro, e
"Os Sete Fôlegos de
um Livro", sobre a
"Formação da Literatura Brasileira", de
Antonio Candido.
As "Sequências
Brasileiras" de Roberto Schwarz apontam para aspectos estruturais da experiência histórica do país,
em que a herança das
relações coloniais
tem papel decisivo.
Esse seria o fio subterrâneo do livro de
Schwarz: perseguir,
naquilo que analisa, a
formalização de um
conjunto de relações
altamente problemático, incompatível
com o padrão das nações modernas e ao
mesmo tempo resultado da evolução do
mundo moderno. Trata-se, em
suma, de encontrar algo como a
"forma do Brasil" e mostrar porque o país nunca foi (nem mais
será) uma nação civilizada.
Quem acompanha o crítico já
conhece o esquema que ele agora
desdobra sobre o presente. Em relação a Machado de Assis (primeiro em "Ao Vencedor as Batatas", de 1977, e, depois, em "Um
Mestre na Periferia do Capitalismo", de 1990) seu rendimento é
notável, a ponto de certas pessoas
atribuírem, com doses de ironia,
mais genialidade e impertinência
ao crítico que ao próprio escritor.
Na entrevista que segue,
Schwarz responde às objeções
que lhe fez recentemente a respeito de Machado o crítico Alfredo
Bosi, ele próprio alvo de um ensaio. Comenta, pela primeira vez,
o livro "Verdade Tropical", de
Caetano Veloso, e faz uma análise
surpreendente da canção "How
Beautiful Could a Being Be", do
disco "Livro", também de Veloso.
Schwarz não fala a respeito do
governo de seu amigo de mais de
40 anos. Nem precisa. Basta ler
seu livro, em que a idéia da "desagregação nacional" dá o tom e
instrui o resto da análise.
Um exemplo: "A nação não vai
se formar, as suas partes vão se
desligar umas das outras, o setor
"avançado" da sociedade brasileira
já se integrou à dinâmica mais
moderna da ordem internacional
e deixará cair o resto. À vista da
nação que não vai se integrar, o
próprio processo formativo terá
sido uma miragem que a bem do
realismo é melhor abandonar".
Seria esse o ponto de fuga das
sequências de um país que...
Folha - O seu livro contém perfis biográficos, crítica literária,
balanços de época, crítica dos
críticos, análise política e até
um conto. Onde estão as "Sequências Brasileiras"?
Roberto Schwarz - Os ensaios,
mesmo quando tratam de Brecht
ou de Kurz, dizem respeito ao
Brasil. Não é por verdeamarelismo. Aprendi que ao aprofundar
as questões, ao examiná-las nos
termos da experiência recente, o
ângulo brasileiro se configura.
A maneira, por exemplo, pela
qual Brecht é e foi atual aqui mostra aspectos reais da obra dele, diferentes daqueles que se impuseram na Alemanha. É um capítulo
da reelaboração do vanguardismo europeu na periferia do capitalismo. Universalização, se não
for uma palavra vazia, é isto. Pode
soar extravagante, mas não deixa
de ser a desprovincianização do
universalismo europeu.
Folha - Há algo análogo em relação às idéias de Robert Kurz?
Schwarz - Sendo uma teoria
abrangente do colapso da modernização, o livro dele se choca com
a nossa imensa aspiração modernizadora, que tem fundamento
estrutural no país e parece indescartável até segunda ordem. Cria-se um debate, para não dizer uma
trombada, do maior interesse.
Folha - E as "sequências"?
Schwarz - A palavra não está
em sentido de cronologia, nem de
sucessão simples, assim como o
Brasil não está em sentido geográfico. A idéia é que a concatenação
dos argumentos e das formas dramatiza, além de desdobrar, aspectos estruturais de nossa experiência histórica, em que a herança
das relações coloniais entra de
forma decisiva e meio recalcada.
As sequências estão num poema, num romance ou na arquitetura de um ensaio. Na lógica da
formação de uma literatura nacional, nos passos da reflexão histórico-social e, sobretudo, no curso das coisas.
Folha - A herança colonial estaria presente em todas elas?
Schwarz - A herança colonial
que nos coube, com as suas desigualdades sacramentadas, é mais
profunda e está mais presente do
que temos o costume de reconhecer. A fração mais ou menos moderna do país alimenta a ilusão de
não ter muito a ver com o assunto. Entretanto, basta examinar de
perto as nossas obras significativas, os desempenhos ou os momentos cruciais do país, para descobrir que são essas questões que
lhes imprimem a força, para o
bem e para o mal.
"Da maneira como é cantada por Caetano, a canção "How Beautiful Could a
Being Be" soa mais familiar, algo
como o
"cu da Bimbi", que fica sendo o verdadeiro "beautiful"; não deixa
de ser uma passagem do
Primeiro Mundo ao nosso"
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Folha - Você estaria amarrando o artista e o intelectual brasileiro aos temas do atraso?
Schwarz - Sobretudo em arte,
onde a forma redimensiona tudo,
não tem sentido recomendar temas. Os assuntos mais urgentes,
tratados em espírito convencional, fazem figura lamentável. E os
mais etéreos ou inesperados podem adquirir proximidade. Os
ouvintes do último disco de Caetano terão reparado na faixa
"How Beautiful Could a Being
Be", em que o deslizamento da
pronúncia e as muitas repetições
da frase, um tanto remota, fazem
com que o "could a being be" se
transforme em algo mais familiar,
como o "cu da Bimbi", que fica
sendo o verdadeiro "beautiful".
Não deixa de ser uma passagem
do Primeiro Mundo ao nosso, no
caso com vantagem para o lado
de cá, sem que as tensões entre o
inglês e o brasileiro, o estrangeiro
e o nacional, a expressão elevada e
a familiar estivessem explícitas.
Folha - A propósito de Caetano Veloso, no ensaio sobre o
Brecht há duas menções marginais a "Verdade Tropical", que
resultam simpáticas. É a primeira vez que você fala desse livro,
que desagradou a esquerda.
Schwarz - Eu li "Verdade Tropical" com grande interesse, é um livro de peso para entender os anos
60 no Brasil. Tem envergadura intelectual, junta coisas difíceis de
juntar, resume posições estéticas
e posições políticas com muita
acuidade, os retratos que traça
são finos, é o trabalho de um intelectual com grande capacidade literária. O que se pode objetar ao
livro é que o processo que ele
mostra não leva às conclusões que
ele tira. Estas são relativamente
satisfeitas e complacentes com o
ponto de chegada do período.
Caetano mostra bem que o que
nossa vida cultural teve de mais
vivo e profundo se deveu à radicalização democrática do populismo, com suas alianças de classe
heterodoxas e pré-revolucionárias abrindo a imaginação dos interessados. As formas de talento
artístico e de originalidade que o
livro descreve se enraízam no pré-64, quando o Brasil estava colocando de maneira aguda e social
os seus problemas. Esse é o chão
de que Caetano se alimenta.
Entretanto, como o livro é em
boa parte uma polêmica com a esquerda, a ênfase fica na depreciação dessas molas sociais, ainda
que sejam as molas da imaginação dele e da vida cultural do período. Então, ao mesmo tempo
que Caetano se beneficia das verdades democráticas do conflito
que movimentou o Brasil até a
abertura, ele as desqualifica, se
alinha com a atenuação das contradições e mesmo aprova o seu
desmanche no comercialismo. O
movimento do livro é grande,
contraditório, representativo e
importante para o debate.
Folha - Voltando ao atraso, ele
é o nosso destino?
Schwarz - É claro que o escritor
brasileiro não tem obrigação de
tratar do atraso. Mas escrever
bem, no sentido exigente da palavra, é não ser surdo, ou melhor, é
ser aberto para a experiência histórica recolhida na linguagem, no
caso a brasileira. O embotamento
a respeito pode tomar inúmeras
formas, como o tecnocratês, o bacharelismo, o padrão Globo, a
fórmula comercial...
É um engano subalterno supor
que as questões densas sejam as
do mundo dito adiantado, ao passo que as nossas seriam ralas. A
inaceitável estrutura de classes do
país, bem como a nossa posição
relativa no concerto das nações
-o atraso pelo qual você perguntou- são desgraças, mas não são
irrelevantes nem ultrapassadas.
Se os nossos intelectuais não fossem tão ofuscados, haveria até o
risco contrário, de um ufanismo
da calamidade e de seus ensinamentos de ponta, inacessíveis aos
cidadãos ingênuos das sociedades
que pregam o liberalismo mas em
que ainda existe a proteção social.
Folha - A ofuscação intelectual
a que você se referiu não teria a
ver com a atual pressão do
"pensamento único"? Ou você
não acredita que ela exista?
Schwarz - Não estava pensando
nisso, mas você deve ter razão. A
crise do desenvolvimentismo havia gerado e até certo ponto generalizado uma visão crítica importante, para a qual havia conexão e
realimentação recíproca entre as
deformidades internas do país e
as deformidades da ordem internacional. Hoje o quadro é outro e
vivemos sob o signo do "ajuste" e
da "atualização", um signo claramente regressivo do ponto de vista da plataforma intelectual anterior. Como as palavras indicam,
trata-se de entrar na linha e de
não criticar ou atrapalhar.
É certo que em âmbito internacional a imensa vitória do capital
sobre os seus adversários sociais
se completou através de um fogo
de barragem ideológico. Nessas
circunstâncias, a crítica
passou a ser mal recebida. Esta entretanto é
só a metade da missa.
Em lugar de atribuirmos a nossa falta de repercussão à má vontade do adversário, que
existe e seria surpreendente que não existisse,
é preciso reconhecer a
parte da perplexidade
objetiva causada pela
nova feição da economia, diante da qual a
esquerda não sabe uma
saída clara, sem prejuízo da justiça das objeções ao rumo das coisas. A impressão de
pensamento único
também decorre disso.
Folha - Feitas as
contas e apesar dos
seus esforços explicativos, a sua reputação
na praça segue sendo
a de "crítico sociológico", no mau sentido,
obviamente.
Schwarz - Esse rótulo
colou e vai me acompanhar até a cova. Ele
não é fácil de entender,
embora a intenção depreciativa seja óbvia. A
idéia é de que a boa crítica não se mistura à reflexão histórico-social.
Mas será mesmo que a
análise das formas é
melhor quando não diz
nada do mundo?
Os manifestos de Oswald não são uma visão histórico-social do Brasil?
Mário não tinha idéias a respeito
do país, como artista e como crítico? O culto joão-cabralino do despojamento não é uma proposta
parapolítica? Os próprios concretistas, que gostam de desancar a
crítica social, sempre tiveram teses nítidas sobre a época, teses pelas quais se pautavam disciplinadamente, como qualquer grupo
que quer ocupar espaço e mudar
as coisas. Seria um absurdo criticá-los por terem uma visão histórico-social do presente e de si
mesmos. O problema não está aí,
está na qualidade dessa visão, a
que as obras, por seu lado, podem
não corresponder.
Dito isso, é patente a superioridade dos críticos que circulam
bem, sem contra-sensos e reduções forçadas, entre a discussão
das formas artísticas e das formas
sociais. Pense no interesse fulminante das análises de Walter Benjamin, de Adorno, e no Brasil, de
Antonio Candido.
Folha - No último livro de Alfredo Bosi, "O Enigma do
Olhar", há uma discussão longa
da visão que a crítica social, que
ele ataca em várias frentes, tem
de Machado de Assis...
Schwarz - As objeções do Bosi
são de outra ordem, e não são as
mesmas segundo o interlocutor.
Li bem o livro anterior dele, "A
Dialética da Colonização", onde
impressiona o vigor com que a argumentação histórico-social, frequentemente de caráter marxista,
é mobilizada contra o catolicismo
oficial, para empurrar a igreja para a esquerda. Já quando Bosi discute o ateu Machado de Assis e os
seus intérpretes materialistas, ele
sente necessidade de algo mais,
digamos, imaterial. São as contradições sintomáticas de um católico de esquerda que eu admiro.
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