|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVRO/LANÇAMENTO
ENSAIO
Autor crê que atualidade da obra de Euclydes da Cunha está em tornar o passado uma realidade contemporânea
Para Bosi, é necessário reler "Os Sertões"
DA REDAÇÃO
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Alfredo
Bosi concedeu à Folha.
(SYLVIA COLOMBO)
Folha - O sr. diz: "A literatura,
com ser ficção, resiste à mentira. É
nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o
lugar da verdade mais exigente". A
resistência que a literatura oferece
cumpre-se especificamente dentro
do espaço da literatura?
Alfredo Bosi - [Antonio] Gramsci (1891-1937), que era um pensador revolucionário, reconhecia,
porém, a diferença que, em geral,
separa a militância política e a arte. A política de esquerda é uma
ação organizada para mudar a
realidade, o que é, aliás, um ponto
capital do marxismo. O artista,
mesmo quando o seu credo é radical, usa do seu talento para representar o real, interpretá-lo e
exprimi-lo à luz das suas intuições
e dos seus sentimentos.
Assim, o artista pode estimular
no leitor o desejo de mudar as coisas, e que é um efeito político da
arte. Mas esse efeito não é responsável pelo valor expressivo e estético da obra. Um grande romancista, como Balzac e Dostoiévski,
pode ter uma ideologia conservadora e suscitar atitudes de revolta
no leitor revolucionário.
Folha - No artigo "Canudos Não
se Rendeu", o senhor chama a
atenção para a necessidade de modernizarmos nossa leitura de "Os
Sertões". Deveríamos levar em
conta seus "estratos superiores e
mais resistentes" em detrimento
de características que o tornam
uma obra datada: seu "determinismo estreito" e a "linguagem rebuscada". O que viria à tona com a nova leitura que o sr. propõe?
Bosi - "Os Sertões" já têm um século de vida. A sua presença na
cultura brasileira deve-se a razões
que superam as duas características que marcaram a obra quando
apareceu: o determinismo do
meio e da raça e a linguagem árdua, hiperbólica. O que resiste até
hoje, e faz de "Os Sertões" um livro fascinante, é a expressão do
drama vivido pelos fiéis de Antônio Conselheiro em Canudos.
A desproporção entre as forças
do Exército e os recursos dos sertanejos representa o abismo que
havia entre o Brasil formal e o
Brasil profundo. Euclydes, que
inicialmente julgava o Conselheiro uma ameaça à jovem República, um "foco monarquista" perigoso, acabou se convencendo de
que se tratava de um movimento
de gente pobre e abandonada. E a
reportagem que ele fez, "in loco",
virou a denúncia de um crime. Essa é a atualidade viva de "Os Sertões": tornar o passado uma realidade de certa forma contemporânea do historiador, como propunham, com filosofias diferentes,
Croce e Benjamin.
Folha - No mesmo artigo, o sr. diz
que a compreensão do messianismo do Conselheiro foi uma "conquista no roteiro intelectual de
Euclydes". Em que medida o sr.
acredita que o autor de "Os Sertões" diferenciava-se do padrão
dos intelectuais de sua época?
Bosi - Euclydes formou-se na segunda metade do século 19, época
áurea do determinismo racial e do
evolucionismo linear. Os seus
mestres europeus e brasileiros
(como o médico-antropólogo Nina Rodrigues) consideravam o
branco europeu organicamente
superior a todos os povos colonizados. O fenômeno do messianismo entrava, sem mais, na categoria do atraso. Euclydes não conheceu nenhuma outra explicação "científica" para entender o
messianismo. Mas, levado por
uma intuição ética, ele conseguiu,
ao menos, sentir a contradição social e cultural que gerava o comportamento dos sertanejos.
Foi um passo adiante que ele
deu, por si mesmo, o que o diferencia de muitos intelectuais do
seu tempo, que viam o Brasil só a
partir da rua do Ouvidor e dos
brilharecos da Belle Époque. É
preciso lembrar que os grandes
estudos sobre o messianismo no
Brasil só apareceriam nos anos 60
com as pesquisas de Maria Isaura
Pereira de Queiroz e Douglas Teixeira Monteiro, entre outros.
Folha - Em outro texto, o sr. diz
que "o ímpeto nacional-romântico
resistiu e sobreviveu conforme as
condições políticas locais, e pôde
resistir até o nosso tempo, reavivando-se sempre que o conflito das
ex-colônias com o imperialismo
precise de um cimento ideológico e
de um imaginário que o alimente".
Acha que, num mundo globalizado,
o "nacional-romântico" pode reavivar-se como forma de resistência?
Bosi - A expressão "ímpeto nacional-romântico" é adotada no
livro em sentido histórico preciso.
A cultura que se gestou durante o
processo de nossa independência
(e se exprimiu ao longo do século
19) foi, ao mesmo tempo nacional, por oposição ao passado colonial português, e romântica, na
medida em que todo o Ocidente
vivia os desdobramentos da Revolução Francesa com as conquistas do indivíduo que a ascensão burguesa propiciava. Essa
matriz tem uma força simbólica
resistente. Quanto mais o Imperialismo aperta o cerco às nações
emersas do velho colonialismo,
na América Latina, na África e em
algumas zonas do mundo árabe,
tanto mais a cultura nacionalista
se vê alimentada e ganha conotações românticas e utópicas.
É claro que o termo "romântico" passou a ser metáfora empregada por oposição ao conformismo dos sequazes da pura globalização, que se presumem os únicos "realistas" do novo milênio.
Folha - Qual o legado de Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido para a crítica literária que se faz hoje?
Bosi -Procurei resumir as contribuições desses dois grandes mestres insistindo sobretudo na liberdade de espírito com que Otto
Maria Carpeaux e Antonio Candido se valem dos vários métodos
críticos disponíveis (culturalismo, marxismo, psicanálise, fenomenologia, estilística), para detectar a riqueza contraditória das
grandes obras literárias. Em ambos, a tensão entre indivíduo e sociedade, criação e representação,
se faz dialeticamente. Com isso, as
limitações do sociologismo e do
formalismo são superadas, o que
é um tento admirável.
Texto Anterior: Comentário: Uma forma de resistência que pode incomodar Próximo Texto: "Hiroshima": Obra propõ e visão crua do holoc austo nucle ar Índice
|