São Paulo, sábado, 07 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO/LANÇAMENTO

ENSAIO

Autor crê que atualidade da obra de Euclydes da Cunha está em tornar o passado uma realidade contemporânea

Para Bosi, é necessário reler "Os Sertões"

DA REDAÇÃO

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Alfredo Bosi concedeu à Folha.
(SYLVIA COLOMBO)

Folha - O sr. diz: "A literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente". A resistência que a literatura oferece cumpre-se especificamente dentro do espaço da literatura?
Alfredo Bosi -
[Antonio] Gramsci (1891-1937), que era um pensador revolucionário, reconhecia, porém, a diferença que, em geral, separa a militância política e a arte. A política de esquerda é uma ação organizada para mudar a realidade, o que é, aliás, um ponto capital do marxismo. O artista, mesmo quando o seu credo é radical, usa do seu talento para representar o real, interpretá-lo e exprimi-lo à luz das suas intuições e dos seus sentimentos.
Assim, o artista pode estimular no leitor o desejo de mudar as coisas, e que é um efeito político da arte. Mas esse efeito não é responsável pelo valor expressivo e estético da obra. Um grande romancista, como Balzac e Dostoiévski, pode ter uma ideologia conservadora e suscitar atitudes de revolta no leitor revolucionário.

Folha - No artigo "Canudos Não se Rendeu", o senhor chama a atenção para a necessidade de modernizarmos nossa leitura de "Os Sertões". Deveríamos levar em conta seus "estratos superiores e mais resistentes" em detrimento de características que o tornam uma obra datada: seu "determinismo estreito" e a "linguagem rebuscada". O que viria à tona com a nova leitura que o sr. propõe?
Bosi -
"Os Sertões" já têm um século de vida. A sua presença na cultura brasileira deve-se a razões que superam as duas características que marcaram a obra quando apareceu: o determinismo do meio e da raça e a linguagem árdua, hiperbólica. O que resiste até hoje, e faz de "Os Sertões" um livro fascinante, é a expressão do drama vivido pelos fiéis de Antônio Conselheiro em Canudos.
A desproporção entre as forças do Exército e os recursos dos sertanejos representa o abismo que havia entre o Brasil formal e o Brasil profundo. Euclydes, que inicialmente julgava o Conselheiro uma ameaça à jovem República, um "foco monarquista" perigoso, acabou se convencendo de que se tratava de um movimento de gente pobre e abandonada. E a reportagem que ele fez, "in loco", virou a denúncia de um crime. Essa é a atualidade viva de "Os Sertões": tornar o passado uma realidade de certa forma contemporânea do historiador, como propunham, com filosofias diferentes, Croce e Benjamin.

Folha - No mesmo artigo, o sr. diz que a compreensão do messianismo do Conselheiro foi uma "conquista no roteiro intelectual de Euclydes". Em que medida o sr. acredita que o autor de "Os Sertões" diferenciava-se do padrão dos intelectuais de sua época?
Bosi -
Euclydes formou-se na segunda metade do século 19, época áurea do determinismo racial e do evolucionismo linear. Os seus mestres europeus e brasileiros (como o médico-antropólogo Nina Rodrigues) consideravam o branco europeu organicamente superior a todos os povos colonizados. O fenômeno do messianismo entrava, sem mais, na categoria do atraso. Euclydes não conheceu nenhuma outra explicação "científica" para entender o messianismo. Mas, levado por uma intuição ética, ele conseguiu, ao menos, sentir a contradição social e cultural que gerava o comportamento dos sertanejos.
Foi um passo adiante que ele deu, por si mesmo, o que o diferencia de muitos intelectuais do seu tempo, que viam o Brasil só a partir da rua do Ouvidor e dos brilharecos da Belle Époque. É preciso lembrar que os grandes estudos sobre o messianismo no Brasil só apareceriam nos anos 60 com as pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Douglas Teixeira Monteiro, entre outros.

Folha - Em outro texto, o sr. diz que "o ímpeto nacional-romântico resistiu e sobreviveu conforme as condições políticas locais, e pôde resistir até o nosso tempo, reavivando-se sempre que o conflito das ex-colônias com o imperialismo precise de um cimento ideológico e de um imaginário que o alimente". Acha que, num mundo globalizado, o "nacional-romântico" pode reavivar-se como forma de resistência?
Bosi -
A expressão "ímpeto nacional-romântico" é adotada no livro em sentido histórico preciso. A cultura que se gestou durante o processo de nossa independência (e se exprimiu ao longo do século 19) foi, ao mesmo tempo nacional, por oposição ao passado colonial português, e romântica, na medida em que todo o Ocidente vivia os desdobramentos da Revolução Francesa com as conquistas do indivíduo que a ascensão burguesa propiciava. Essa matriz tem uma força simbólica resistente. Quanto mais o Imperialismo aperta o cerco às nações emersas do velho colonialismo, na América Latina, na África e em algumas zonas do mundo árabe, tanto mais a cultura nacionalista se vê alimentada e ganha conotações românticas e utópicas.
É claro que o termo "romântico" passou a ser metáfora empregada por oposição ao conformismo dos sequazes da pura globalização, que se presumem os únicos "realistas" do novo milênio.

Folha - Qual o legado de Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido para a crítica literária que se faz hoje?
Bosi -
Procurei resumir as contribuições desses dois grandes mestres insistindo sobretudo na liberdade de espírito com que Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido se valem dos vários métodos críticos disponíveis (culturalismo, marxismo, psicanálise, fenomenologia, estilística), para detectar a riqueza contraditória das grandes obras literárias. Em ambos, a tensão entre indivíduo e sociedade, criação e representação, se faz dialeticamente. Com isso, as limitações do sociologismo e do formalismo são superadas, o que é um tento admirável.



Texto Anterior: Comentário: Uma forma de resistência que pode incomodar
Próximo Texto: "Hiroshima": Obra propõ e visão crua do holoc austo nucle ar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.